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Artigo: Quatro temas da política cultural e a arte das periferias

Por Eleilson Leite*
I – O salto da política de governo para uma política de Estado
A gestão Gil-Juca no governo Lula elevou a cultura a um patamar de política pública abrangente, articulada e participativa, algo jamais alcançado pelo Ministério da Cultura desde sua criação, em 1985. Passada essa etapa, o órgão, bem como as instâncias estaduais e municipais de cultura, se veem diante do desafio de estruturar e efetivar uma política de Estado . Essa envergadura política se dará pela efetivação do Sistema Nacional de Cultura que, por sua vez, é sustentado pelo Plano Nacional de Cultura, ambos aprovados pelo Congresso Nacional.

O Plano já tem metas estabelecidas e todo o procedimento de orientação para sua estruturação em nível local. Caberá aos municípios, além de elaborar um Plano Municipal de Cultura, criar um conselho e um fundo. Feito isso, a cidade pode aderir ao Sistema e assim acessar recursos federais, como acontece nas áreas de educação, saúde, trabalho e tantas outras. Dessa forma, a cultura no Brasil finalmente alcançará uma estrutura em termos de política que abrirá às organizações culturais, sejam elas governamentais ou não governamentais, companhias artísticas, produtoras culturais e movimentos sociais de cultura uma perspectiva de atuação num cenário político definido por um marco legal, no qual as regras estão asseguradas para além das motivações das gestões governamentais.

A eficácia do Sistema, no entanto, depende da adesão dos estados e municípios e isso não é uma operação simples.  É uma tarefa política gigantesca e complicada e que exigirá do MinC uma liderança política muito forte. Além disso, há outra condicionante fundamental que é a necessidade de aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 150, que estabelece o padrão orçamentário para a cultura, definindo o patamar de 2% para a União; 1,5% para os estados e 1% para os municípios. Assegurando em lei um coeficiente orçamentário como ocorre há décadas com a educação, a equação do Sistema Nacional de Cultura pode ser resolvida. A garantia do acesso a recurso é sempre um dado de viabilidade fundamental. Nesse sentido, há também outro Projeto de Lei em tramitação que corroborará um aporte de recurso mais robusto para a cultura. Trata-se do Pró-Cultura, projeto que altera a atual Lei Rouanet, estabelecendo novas bases para o mecenato feito à base de incentivo fiscal .

Criadas todas as normativas, fica ainda a dificuldade burocrática para os municípios efetivarem a sua adesão. No Brasil, apenas 15% das cidades têm secretarias de cultura, o que equivale a cerca de 1.100 municípios. Na grande maioria das cidades brasileiras, as instâncias municipais de cultura estão vinculadas às secretarias de educação, esporte, turismo e assistência social, ou são atribuição da primeira dama. Dedicam-se a organizar os eventos municipais oficiais, festas juninas, desfiles, Natal, entre outros festejos. Não há equipe técnica capacitada o suficiente para implementar as bases locais do Sistema Nacional de Cultura. Mas, em sendo implantado, o Sistema abrirá uma grande possibilidade de criar nessas localidades uma política de cultura mais consistente. Será um grande avanço. Neste sentido, organizações do movimento cultural periférico têm aí uma importante frente de atuação. Podem tanto atuar na efetivação dos planos municipais de cultura como também nos planos municipais do livro e da leitura, outro marco legal definido recentemente, cuja implementação no nível local está muito abaixo das expectativas, por falta de visão dos municípios e da crônica deficiência técnica da gestão municipal.

II – Os editais entre o produto e o processo

Os artistas, companhias, grupos e movimentos culturais estão tendo cada vez mais possibilidades de acesso a recursos para viabilizar seus projetos via editais públicos. Nas três esferas de governo, as oportunidades se multiplicam. Embora muito longe de atenderem à demanda, esses editais não podem ser desprezados; pelo contrário. E o movimento cultural, de periferia está atento a isso, não só acessando, como implementando lutas visando a sua ampliação e melhor adequação aos interesses dos artistas periféricos. Prova disso é a ampliação do VAI , em São Paulo, e do PROAC , do estado de São Paulo, que abriu mais três linhas de apoio, entre elas, Sarau Literário e Cultura Negra, atendendo antiga reivindicação do movimento cultural periférico. Já em nível federal, depois de um período de estagnação da política cultural durante os 20 meses em que a ministra Ana de Hollanda esteve à frente da Pasta, a nova gestão, sob o comando da ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy, retomou os editais, criando inclusive uma série deles direcionado exclusivamente a proponentes negros.

Cabe ainda nessa questão do fomento via editais a ampliação de possibilidades de investimento de médio e longo prazo, como é o caso dos Pontos de Cultura (três anos) e as leis de fomento da cidade de São Paulo (cinema, dança e teatro), que duram dois anos. Editais como o VAI e o PROAC destinam-se à elaboração de produtos culturais (espetáculos, CDs, livros, exposições), enquanto que os dois exemplos anteriormente citados privilegiam a manutenção de grupos e organizações. Há uma proposta sendo discutida, elaborada por Pablo Ortellado e Luciana Lima, que propõe a criação do Bolsa Cultura. Trata-se de um apoio público de dois anos através de pagamento mensal a artistas e grupos nos moldes das bolsas de pesquisa dos programas de pós-graduação. O beneficiário desta bolsa não precisaria necessariamente elaborar um produto, mas teria que desenvolver, ao longo do período de subvenção, progressos conceituais e artísticos referente a sua prática (aperfeiçoamento musical, cênico, literário, etc). É uma forma interessante, que poderia ajudar em muito o desenvolvimento artístico dos agentes culturais, sobretudo os de periferia que, na maioria, não tiveram oportunidade de aprofundamento artístico. O Prefeito Fernando Haddad assumiu o compromisso de adotar esta proposta enquanto era candidato e o Secretário Municipal de Cultura, Juca Ferreira, já ratificou a promessa de campanha. Será a grande janela de oportunidade para os artistas periféricos. Essa ação, somada ao VAI, vai dar o que falar, cantar, dançar, filmar, pintar nas quebradas de São Paulo e depois, quiçá, em todo o País.

III – A cultura na agenda social e a emergência dos  arte-educadores

Nos últimos dois anos, ganhou força no Governo Federal e no Estado de São Paulo a visão de que a cultural é um instrumento importante de ação social. Durante o curto período em que ocupou o Ministério da Cultura, Ana de Hollanda articulou suas poucas iniciativas à agenda social do Governo. Encampou as Usinas de Cultura, ideia gestada no Conselho de Direitos e Cidadania da Secretaria Geral da Presidência, uma iniciativa que tem como foco segmentos vulneráveis da sociedade, como jovens, especialmente a juventude negra.  Ficou responsável pelas praças do PAC (praças dos esportes e da cultura), uma ação do Ministério do Planejamento.  Criou o + Cultura + Educação, programa que atende às demandas de cultura do Ministério da Educação no Programa desta Pasta chamado Mais Educação. Ou seja, o MinC foi a reboque das outras políticas governamentais, rebaixando a cultura como protagonista, colocando-a como um subproduto de ações cujo objetivo têm outro foco que não a promoção e garantia de acesso à cultura. A ex-prefeita Marta Suplicy já mudou a postura do Ministério, mas manterá essas ações, dando uma marca própria aos projetos, como no caso das Praças do PAC, que passarão a se chamar CEUs do PAC, numa referência clara aos Centros de Educação Unificados que ela criou durante sua gestão na Prefeitura de São Paulo.

Já no estado de São Paulo, a aproximação da cultura com a assistência social se dá por opção deliberada da Secretaria de Cultura e não por uma questão de submissão e falta de política própria. Está sob responsabilidade da Secretaria Estadual as Fábricas de Cultura, que são estruturas de grande porte, altamente equipadas  e com razoável dotação orçamentária. Esses espaços visam atender a crianças, adolescentes e jovens até 19 anos em áreas de vulnerabilidade social na cidade de São Paulo. São nove Fábricas, sendo que até 2012 cinco delas já estavam em funcionamento, todas em áreas da periferia paulistana. Esse projeto das Fábricas de Cultura tem o apoio do Banco Mundial e é visto como uma das prioridades da atual gestão do Governo do Estado.

Tanto em um caso como no outro, não obstante o prejuízo da noção de direito à cultura, face ao acesso focalizado ao invés de universalizado, abre-se um campo de trabalho muito vasto para arte- educadores. Todas essas estruturas necessitarão de artistas educadores que saibam transmitir seus conhecimentos artísticos numa dinâmica de ensino aprendizagem baseada em noções práticas, ou seja, oficinas. Somente as Fábricas de Cultura contrataram cerca de 300 arte-educadores.  Podemos somar à demanda por arte-educação a Fundação Casa, que só no estado de São Paulo contrata cerca de 500 profissionais, além das tradicionais Oficinas Culturais – um programa que existe desde a década de 1980 -, entre outras oportunidades, criando um amplo contingente de profissionais atuantes. Grande parte deles são artistas com dificuldades de se manterem através de sua atividade artística e que dão oficinas para garantir sua renda. Ou seja, trata-se de um segmento de educadores que merece uma atenção muito especial das gestões públicas, dada sua relevância tanto profissional quanto cultural e artística.

IV – Ampliação do consumo cultural e o desenvolvimento artístico

Nos últimos dias do ano de 2012, foi sancionada pela Presidente Dilma Rousseff a Lei do Vale Cultura, projeto que tramitava no Legislativo desde 2009. Tal medida dará ao trabalhador que recebe até cinco salários mínimos (cerca R$ 3.390,00) um bônus de R$ 50,00 para gastar em produtos culturais (shows, cinema, livros, revistas, teatro, etc.).  Essa medida injetará cerca de R$ 5 bilhões no consumo de cultura, cinco vezes mais do que o Governo Federal dispensa de Imposto de Renda das empresas com incentivo fiscal. Será uma revolução que ampliará significativamente o mercado, abrindo, consequentemente, muitas oportunidades paras os artistas se apresentarem, venderem seus livros, discos, filmes e tudo o mais. É fundamental aqui ações em favor do desenvolvimento artístico da produção cultural periférica, pois para se beneficiar dessa significativa ampliação do mercado, os artistas periféricos, pelo menos os que assim desejarem, terão que investir na qualificação estética de suas produções para se manterem ativos na cena cultural. O Bolsa Cultura, citado anteriormente, responde em boa medida a essa demanda.

Junto com o Vale Cultura, há um incremento significativo na ampliação de espaços culturais, sejam públicos ou privados. Tomando São Paulo como referência, tivemos nos últimos três anos a criação da Escola de Teatro de São Paulo; Biblioteca São Paulo, erguida no terreno do Antigo Carandiru; Paço das Arte, com o conservatório musical do Município; Pavilhão das Culturas Brasileiras; e reforma de inúmeros equipamentos, como Biblioteca Mario de Andrade, Teatro Municipal e Centro Cultural São Paulo. Enquanto isso, o SESC não cessa de abrir novas unidades, empresas criam centros culturais e assim a cidade consegue atingir marcas notáveis como mais de 300 peças de teatro em cartaz por mês na alta temporada.

O movimento cultural da periferia não pode ficar fora dessa pujante cena cultural e para isso não bastará apenas afirmação política da origem periférica para ganhar espaço. Será necessário mostrar que a periferia tem uma estética própria e uma produção artística de qualidade, que merece ser prestigiada. Mas para isso terá que se gabaritar e meios para isso existem, como foi aqui demonstrado. A hora é agora.

-[1] O MINC durante o período de 2003 a 2010 realizou duas conferências nacionais de cultura; aprovou o Plano Nacional de Cultura no Congresso e criou os Pontos de Cultura que somam atualmente cerca de 3200 instituições assim reconhecidas, ente outras iniciativas. Esta Gestão formulou e executou uma política abrangente que via a cultura em suas três dimensões: simbólica, cidadã e econômica.[2] O Plano Nacional de Cultura foi aprovado em dezembro de 2010 enquanto o Sistema foi homologado pelo Senado em outubro de 2012 e aguarda sansão presidencial.[3] Além de alterar o padrão de incentivo criando cinco faixas de incentivo que vão de 30% a 90%, eliminando o incentivo de 100%, criará diversos fundos para os quais será possível repassar recursos e não somente a projetos e terá mecanismos que estimulará apoios a projetos fora do Eixo Rio São Paulo, entre outras medidas.[4] Valorização de Iniciativas Culturais, Programa da Prefeitura de São Paulo que repasse R$ 20.000,00 a coletivos jovens, preferencialmente das periferias. O Vai em 2012  apoiou 180 projeto contra os 140 apoiados no ano anterior.[5] Programa de Ação Cultural, ação de fomento via edital que tem 35 linhas de apoio.

* Antonio Eleilson Leite é coordenador da área de Cultura da Ação Educativa, historiador, programador cultural e colaborador do site Outras Palavras

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