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Carta à Sociedade Brasileira sobre Pacto em Fortaleza

Péssimo exemplo: redução ilegal de dias letivos em Fortaleza causa prejuízos irreparáveis a estudantes

 

Carta à Sociedade Brasileira
Brasil, 05 de março de 2013

Mobilizada por seu Comitê Cearense, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação torna pública sua total discordância e preocupação com o conteúdo do chamado “Pacto de Responsabilidade Social e Pedagógica pelos Estudantes da Rede Pública de Fortaleza”. Com o objetivo de regularizar o calendário escolar da rede municipal de ensino até 2014, o referido Pacto subtraiu até 22 dias do ano letivo de 2012, concluído por força deste acordo, em 28 de fevereiro último.

Na tentativa de corrigir recorrentes e cumulativos atrasos na conclusão dos anos letivos desde o ano civil de 2007, o Pacto em questão contraria determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e fere o direito à educação de estudantes fortalezenses, causando graves prejuízos à aprendizagem dos alunos.

Proposto pela SME (Secretaria Municipal da Educação) de Fortaleza, o Pacto foi assinado por 23 representantes de entidades relevantes, como Secretaria Estadual de Educação do Ceará, sindicatos dos profissionais da educação, Ministério Público do Ceará, OAB-CE (Ordem dos Advogados do Brasil), além de conselheiros de órgãos de proteção dos direitos educacionais, como o Conselho Municipal de Educação (CME) local, e o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica). Embora seja incontestável a representatividade dos signatários, o texto transforma graves equívocos (jurídicos e pedagógicos) em medida administrativa.

No âmbito jurídico, o Pacto erra ao ignorar inciso XXIV do art. 22 da Constituição Federal de 1988, que estabelece “as diretrizes e bases da educação nacional” (LDB/1996) como uma das legislações privativas da União. Ou seja, ao extrair até 22 dias do ano letivo de 2012, esse documento fere a LDB e, consequentemente, a própria Lei Maior. Ocorre que a LDB determina que cada ano letivo deve ser composto, no mínimo, por 800 horas-aula, distribuídas, no mínimo, em 200 dias letivos. Em síntese, reduzir para até 178 dias letivos o calendário escolar de 2012 é expressamente ilegal.

Tanto é assim que, questionada sobre o tema, a Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE), afirmou, em ofício datado em 22 de fevereiro de 2013, que o Pacto consiste em “uma medida de manifesta ilegalidade”, a luz do “Parecer CNE/CEB nº 19/2009, que trata de consulta sobre a reorganização dos calendários escolares, confirmando Pareceres anteriores deste colegiado, que interpretaram dispositivos da Lei nº 9.394/96 (LDB)”.

Em outras palavras, diferente do que tem sido afirmado no tenso debate sobre o Pacto, não há autonomia federativa no tocante ao que está disposto e estabelecido pela LDB.

Por sua vez, no âmbito pedagógico, além dos equívocos jurídicos já descritos, o texto do Pacto fere o direito à educação e, por conseguinte, o direito das crianças e adolescentes. Em seu quinto parágrafo conclui, acertadamente, que os recorrentes atrasos nos anos letivos, verificados desde 2007, ferem o direito subjetivo dos estudantes à educação. Mais adiante, no sexto parágrafo, reconhece que há “perda do ritmo e frequência às aulas [de reposição] e aumento do absenteísmo” por parte dos alunos. Embora esteja acertado o diagnóstico, o que reforça a gravidade do recorrente descumprimento do calendário escolar na rede municipal de Fortaleza, a solução proposta é contraditória: reduzir até 22 dias de aula, dependendo da unidade escolar do estudante.

Ou seja, em nome da solução de problemas administrativos, que prejudicam o andamento e a qualidade de participação dos estudantes nas aulas, é escolhida uma solução absurda e antipedagógica: cortar dias letivos, sem a devida consideração sobre os graves prejuízos à aquisição de conteúdos por parte dos alunos. Em outras palavras, o Pacto é paradoxal. O remédio ministrado ao problemático descumprimento do calendário escolar é, precisamente, cortar aquilo que o define: as aulas.

Mais adiante, no texto do Pacto, é apresentada uma proposta arriscada e duvidosa para “solucionar” o problema: compensar no curso do ano letivo de 2013, de modo dissonante e anticíclico, as horas-aula perdidas no ano letivo de 2012.

Para o 1º e 2º ano do Ensino Fundamental, a compensação seria por meio do acréscimo de 1 hora-aula por dia letivo, com o acréscimo correspondente de remuneração do professor. Para o 3º ao 5º ano, cada escola deveria apresentar uma proposta de reposição. Já para o ciclo do 6º ao 9º ano, a ideia é “universalizar” a cobertura do Mais Educação em Fortaleza. O programa federal é composto por atividades educativas complementares, que envolvem: acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde, educomunicação, educação científica e educação econômica. Porém, por mais que o Mais Educação colabore com o aprendizado dos estudantes, coerentemente, ele não se propõe a substituir os conteúdos primordiais da escolarização obrigatória.

Ademais, considerando que a pior solução se refere ao 6º e 9º ano, fica também manifesto um erro comum no Brasil: a priorização quase exclusiva à alfabetização, em detrimento de uma compreensão abrangente e justa de qualidade da Educação Básica, que começa na Educação Infantil e é concluída no Ensino Médio.

Por fim, se as questões pedagógica e jurídica são falhas no referido Pacto, o aspecto da Responsabilidade Social é temerário. No sexto parágrafo, ao buscar justificativa para a redução do ano letivo de 2012, o texto afirma que o “absenteísmo torna-se particularmente evidente no mês de janeiro, quando, em regra, todos os outros alunos brasileiros estão de férias e quando a alta estação turística em Fortaleza faz que muitos alunos se vejam obrigados a sacrificar a frequência às aulas [de reposição] pela oportunidade de contribuir na complementação do orçamento familiar, ajudando seus pais no comércio ambulante e noutras formas de prestação de serviços aos turistas que para aqui afluem em grande quantidade”.

Este trecho do Pacto é, no mínimo, infeliz. Após 22 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não é cabível ver um texto que insiste em sobrepor o trabalho infantil ao direito à educação. Mais grave é verificar que o Pacto é assinado por representantes do Poder Público e de entidades e órgãos dedicados aos direitos humanos, à política educacional e à proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente. Mesmo diante da realidade social, o Estado brasileiro não pode assumir seu fracasso na consagração dos direitos de suas cidadãs e seus cidadãos, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes.

Considerando e reiterando que o ano letivo de 2012 da rede municipal de Fortaleza foi concluído em 28 de fevereiro último, por meio da equivocada medida administrativa, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação solicita ao Secretário Municipal de Educação de Fortaleza, Ivo Gomes, a revogação desse Pacto. Pelos argumentos elencados e ressaltando a ilegalidade da medida, a rede afirma seu apoio à Ação Civil Pública impetrada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE).

Em apoio ao seu Comitê Ceará, que atua incansavelmente pela revogação do Pacto e correção dos equívocos acima descritos, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação afirma que não medirá esforços para inibir um eventual e preocupante efeito cascata que gere uma descabida redução de dias letivos pelo país afora. Nesse sentido, é particularmente preocupante o último parágrafo do Pacto, que propõe estender a toda a rede estadual do Ceará o erro hoje circunscrito à rede municipal de Fortaleza:

“As entidades signatárias deste documento recomendam que, em consonância com os relevantes objetivos deste Pacto, medida semelhante seja tomada pela Secretaria de Educação do Estado – SEDUC, de modo a regularizar, também, nas escolas estaduais, o calendário letivo.”

Para a rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, princípios são incondicionais e irrevogáveis. Sem qualquer flexibilidade, lugar de criança e adolescente é em uma boa escola: digna, bem equipada, com número adequado de alunos por turma, professores bem formados e adequadamente remunerados, com uma carreira atrativa e promissora. E, para todas e cada uma das entidades que compõe a rede da Campanha, o direito à aprendizagem é parte constitutiva e indivisível do direito à educação. Ano letivo, como bem apontou a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, é para ser cumprido e não para ser negociado. Esperamos que o Pacto não vigore em Fortaleza e, ainda menos, se espalhe pelo Ceará e pelo país afora.

Manifestando o posicionamento coletivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, assina:

Daniel Cara Coordenador Geral – Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Da Campanha Nacional pelo Direito à EducaçãoSeg, 5 de março de 2013

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