“Ah, a Jessica do futuro. Não sei. Eu acho que ela vai estar fazendo o que ela quiser . Sem se importar com nada. Com coisas externas, sabe? Que possam limitar ela? Acho que é isso. Eu não, eu posso projetar ela, mas eu não projeto tanto para ela poder ter a liberdade de não ficar frustrada com nada que ela possa não ser. Eu sei que ela vai provavelmente olhar para muitas borboletas e vai saber que ela está seguindo o caminho certo. Então acho que é isso.” ¹
Quando pensamos em utopias, em possibilidades de futuro, o que nos vem à cabeça? Quando eu era criança gostava muito de imaginar realidades, não como uma espécie de fuga do que estava posto, mas como um momento divertido, inventivo e de experimentação da liberdade, gostava de pensar sobre a possibilidade de realização de algo que ainda não se apresentava. Para uns, o sonho se apresenta como uma engrenagem da vida, para outros como uma ilusão que fragiliza e retira o sentido da realidade.
“Tantas possibilidades e sentidos podem ser dados a esse termo. Por exemplo, entre muitos usos, temos uma força do capitalismo racial/neoliberal: inventar e capturar futuros, imaginações e desejos. E, ao mesmo tempo, em um “estado corporação”, gerir indivíduos frustrados diante da própria promessa de futuro, na manutenção precária de uma certa sobrevivência ou como corpos marcados pelas políticas de morte.”2
No sistema neoliberal em que vivemos é disseminada a ideia da meritocracia, onde frequentemente somos bombardeados por exemplos de “sucesso”, vivemos assim na contradição de imaginar, competir e comumente fracassar. Eu fui incentivada a sonhar, mas quantos tiveram sua capacidade de imaginação cerceada?
Muito cedo, meus pais partilharam comigo seus sonhos. Seriam os sonhos hereditários, passados de gerações em gerações? Sonhamos com uma educação de qualidade, com um lugar de moradia adequado, com a garantia de segurança e com acesso à universidade. Realizamos todos cientes de que não era um privilégio nosso e que nossos familiares também sonharam, mas poucos alcançaram. O sonho também é um direito e a luta coletiva é uma ação mobilizadora em torno dele.
Quando fui contratada como estagiária na Ação Educativa, pude atuar com formação de jovens e conhecer mais de perto os projetos da organização. Trabalhar na instituição foi parte da realização de um desejo pessoal e familiar, foi muito bom unir meus ideais políticos com minha atuação profissional e após oito anos, agora como Supervisora de Comunicação e Eventos, posso confirmar: é imaginando aquilo que não existe e/ou que ainda não se tem, que pavimentamos caminhos no sentido de realizá-los.
Jéssica tem um sonho que a priori parece muito simples, fazer aquilo que se quer. Essa afirmação, em um primeiro momento, pode soar irreal, afinal ninguém faz o que quer. Ninguém? A jovem participante do projeto Mude com Elas nos convida para olharmos por um outro ponto de vista3, enquanto jovem, mulher, negra e moradora da periferia, ela nos apresenta novas inquietações, invertendo assim a ordem hegemônica do mundo, podemos afirmar que na verdade muitos de nós faz somente o que não quer. E por isso pergunto: para quem é possível trabalhar com o que gosta, sair na rua sem medo, ter garantia de moradia, ter direito a sonhar e a realizar?
Há 28 anos a Ação Educativa apoia e mobiliza sonhos, sendo uma das organizações pioneiras na afirmação dos jovens como sujeitos de direitos, tendo contribuído para a visibilidade e inserção das questões das juventudes na agenda pública nacional e para o fortalecimento da participação juvenil nos espaços públicos em que se negociam direitos e políticas.
Nesses 28 anos de existência, a Ação Educativa produziu e disseminou conhecimento sobre juventude; realizou formações variadas (direito à educação / elaboração de projetos / linguagens artísticas / orientação profissional) para jovens das periferias de São Paulo; apoiou a atuação de inúmeros grupos, coletivos e organizações– especialmente os grupos culturais da periferia que utilizam os recursos do Espaço Cultural Periferia no Centro para suas atividades; realizou atividades em parceria com muitos deles – como as Semanas de Cultura Hip-Hop dos anos 2001 a 2010; atuou em articulação com outras organizações e movimentos na defesa dos direitos da juventude (como no enfrentamento do genocídio da juventude negra) e no fortalecimento dos espaços de participação institucional (como o Conselho Nacional de Juventude), além de refletir internamente sobre seu próprio funcionamento implementando políticas no combate ao racismo intitucional.
Assim como para o resto do mundo, para nós os últimos dois anos foram extremamente desafiadores. Mas, mesmo neste período seguimos na produção de conteúdos e eventos online nas áreas de educação, cultura e juventude, acompanhando os debates que emergiam do centro às periferias, fortalecemos nossos laços de solidariedade, compartilhamos histórias e ecoamos vozes femininas, pretas, LGBTQIA+ que resistiam e ainda resistem na cidade.
No ano passado, lançamos 4 episódios da websérie Future-se. Os vídeos, com direção criativa de Pétala Lopes, trazem depoimentos das jovens contempladas pelo projeto Mude com Elas4, em que elas apresentam diferentes perspectivas sobre o futuro e novos horizontes em relação ao mundo do trabalho.
Além da websérie, as jovens do Mude com Elas participaram do grupo focal que resultou na pesquisa “Ocupar o futuro”, realizada em parceria com o pesquisador Daniel Souza, a equipe da Ação Educativa, Piera Peral e Carol Delgado,
Em comemoração aos 28 anos da Ação, lançamos o primeiro vídeo da segunda temporada da websérie, onde podemos esperançar com a Jéssica. Seguindo os princípios da Sankofa, nesta data, lembramos que trabalhamos na construção de novos paradigmas, nos posicionando politicamente junto às organizações e movimentos da sociedade civil que vem historicamente lutando por um mundo melhor. Contamos parte da nossa trajetória até aqui e convidamos você a pensar conosco o que vem depois do fim deste mundo que conhecemos. Talvez não tenhamos respostas prontas, mas nossas próximas ações apontam alguns sentidos!
O que vem por aí
Além da websérie, outras ações já estão previstas neste ano, como a continuidade da celebração do centenário de Paulo Freire e atividades voltadas ao Mês da Juventude, em agosto. A 12ª edição do Estéticas das Periferias que valoriza e dissemina a arte nesses territórios também está confirmada para o segundo semestre e terá como inspiração a cultura Ballroom, fruto da mobilização de comunidades negras, latinas e LGBTQIA+, na década de 60 em NY.
Pesquisas inéditas no campo da educação também serão divulgadas nos próximos meses, bem como um podcast do material didático sobre Educação de Jovens e Adultos e a publicação de planos de aula do Edital Práticas Pedagógicas Antirracistas sobre Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação. Nossas formações, oficinas e cursos seguem em EaD e em breve presencialmente.
No cronograma tem ainda o lançamento de um e-book com a sistematização da experiência de aplicação da metodologia dos Indicadores de Educação e Relações Raciais no Maranhão, especialmente em territórios quilombolas e indígenas.
Outras novidades são a divulgação da publicação dos 20 anos do Concurso Negro e Educação, da publicação sobre Políticas públicas de Juventude e atualização dos Indicadores de Relações Raciais na Escola. Todos os materiais estarão disponíveis para consulta no site da Ação Educativa.
Essas são apenas algumas das ações que teremos nesse desafiante 2022. Não deixe de nos acompanhar imaginando, inventando e lutando com a gente por esse outro mundo que virá.
Raquel Luanda, bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Iniciou na organização em 2014 como estagiária da área de Juventude. Atuou como educadora e articuladora nos projetos Jovens Agentes Pelo Direito à Educação, Segura Essa Ideia: Jovens Agentes pelo Direito à Segurança, Juventudes com Direitos, Jovens Mulheres Negras Fortalecida na Luta contra o Racismo e o Sexismo, Juventudes nas Cidades e atualmente está como Supervisora de Comunicação e Eventos.
1Trecho da Entrevista com Jéssica Oliveira para o 1º episódio da Websérie Future-se
2Citação de Daniel Souza na pesquisa Ocupar o Futuro
3“Segundo essa teoria a experiência da opressão sexista é dada pela posição que ocupamos numa matriz de dominação onde raça, gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos. Assim uma mulher negra trabalhadora não é triplamente oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas experimenta a opressão a partir de um lugar que proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista e sexista” (BAIRROS, 1995, p. 461).
4O projeto MUDE com ELAS é implementado pela Ação Educativa, Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em São Paulo (AHK São Paulo) e também pelo escritório de Terre des hommes Alemanha (Tdh) em São Paulo, responsável pela coordenação geral do projeto e co-financiadora junto com o Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha.)