Dos quilombos ao combate aos discursos de ódio racial no ambiente virtual: se de um lado o racismo e seus mecanismos ainda reproduzem-se na sociedade, de outro as estratégias de resistência e combate a discriminação também seguem presentes e atuais. É dentro desse cenário de criação de estratégias de luta e organização política que ocorreu na sexta-feira (18 de novembro), o lançamento do Repositório de Práticas Pedagógicas sobre Antirracismo e Tecnologias Digitais de Informações e Comunicação – TDICs.
O repositório é uma das ações do projeto TECLA – Tecnologia (em) Ação, iniciativa que insere a Ação Educativa no processo de educação e fortalecimento da luta pela promoção de direitos no ciberespaço. Além da disponibilização do acervo do repositório, na mesma data a organização promoveu o debate “Educação, Justiça Racial e Direitos Digitais” com participação de Sil Bahia (Olabi – PretaLab), Glenda Dantas – (Rede Negra / UFBA) e Turmalina Nogueira – (Perifacon).
No encontro, mediado por Tarcizio Silva, as convidadas compartilharam suas experiências e perspectivas sobre o universo digital, relacionando práticas à vivências, ampliando as ideias sobre os diferentes significados do conceito de tecnologia. O compromisso com a defesa da justiça racial conduziu as reflexões, como apontado por Sil Bahia: “as opressões que vivemos no digital atualmente já estavam presentes no offline muito antes, o que muda é sua potência, a escala que o digital traz dentro das desigualdades”. Sil é co-diretora executiva do Olabi, organização com trabalho nas áreas de inovação social e criatividade, cujo foco é democratizar as tecnologias como forma de transformar a sociedade.
Pensando em como as pessoas negras se colocam nos ambientes digitais, Turmalina Nogueira, idealizadora da Perifacon – primeira convenção nerd das favelas, criada com objetivo de falar de quadrinhos, desenhos, filmes e cultura nerd, geek e pop nas quebradas de São Paulo – apontou o universo game como importante segmento de inclusão e acesso. “Os jogos digitais são espaços de luta, de resistência, precisam ser ocupados”, comenta. Abordando a relevância dos jogos para a construção de identidade e protagonismo da juventude negra, Turmalina destaca que “o jogo é um local de protagonismo, afinal, você pode criar seu próprio personagem, pode ser quem você quiser ser. Não é à toa que pessoas negras gostam muito de RPG e a possibilidade de interpretação e de criar histórias que ele permite. Isso é muito marcante porque você pode sonhar e estar em outra realidade”.
Glenda Dantas, pesquisadora da Rede Negra e da Universidade Federal da Bahia, além de falar sobre sua atuação e produção na área da tecnologia com enfoque em mulheres negras, enfatizou a potência e beleza das práticas tecnológicas alinhadas à educação, como meio de resgate e preservação da história da população negra. “O pensar tecnologia na educação é também pensar o resgate da memória, é pensar na formação de identidade, é pensar numa construção de representatividade também”, salienta.
“Tenho em mim mais de muitos, sou uma mas não sou só”
Os educadores selecionados pelo edital Práticas Pedagógicas Antirracistas sobre Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs), promovido pelo projeto TECLA, também estavam presentes no evento de lançamento do repositório e apresentaram suas propostas educacionais para enfrentamento ao racismo por meio da tecnologia, contribuindo para produção de conhecimento.
Durante o encontro, a educadora Solange Aparecida do Nascimento entoou a canção “Povoada” de Sued Nunes que diz “Quem falou que eu ando só? Tenho em mim mais de muitos, sou uma mas não sou só”, relembrando a potência do trabalho conjunto, e do fortalecimento à luta antirracista. A professora de Palmas, Tocantins, indicou a sequência didática “Saberes Tradicionais no Currículo de Escolas Quilombolas”, o plano resgata a relação intergeracional entre as pessoas das comunidades quilombolas e aborda a preservação dos valores ancestrais impactados pela mineração e agronegócio em plano de expansão no estado do Tocantins, afetando a identidade dessa população. “Quando uma criança que nasceu e cresceu no território diz que não quer ser quilombola, isso tem um significado muito forte, esse discurso de negação da própria identidade acontece também em função dessa disputa por território” afirma Solange. O trabalho declara o compromisso da educadora com o processo de educação junto às mais velhas para conscientizar e potencializar os mais novos: “quando conseguimos construir processos de empoderamento dessa juventude, possibilitamos que eles contem uma história diferente daquela que é contada de fora, é um olhar a partir daqueles que vivenciam a cultura quilombola, é uma forma de ampliar essa movimentação de bens simbólicos na própria comunidade” conclui a professora.
A educadora Nelza Jaqueline Franco apontou a importância do entendimento sobre a história do povo negro e a necessidade de buscar informações a respeito das opressões vividas por essa população, além dos saberes ancestrais e mecanismos de resistência: “Não é uma coisa somente de pessoas brancas não saberem as questões negras, porque nos foi negado, então a gente vai atrás”, destacou Franco, professora de Educação Básica e Profissional em Porto Alegre – Rio Grande do Sul.
Nelza Franco propôs o plano de aula “Memórias e personalidades negras em jogos digitais”, o material consiste em investigar acontecimentos e figuras negras do bairro da Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre – Rio Grande do Sul, para desenvolvimento de objetos de aprendizagem, como jogos digitais, podcasts e vídeo-enciclopédia. Além do alto número de pessoas negras, a região Lomba de Pinheiro é uma das áreas com forte presença indígena, atualmente três etnias ocupam o local (Guaranis, Charruas e Kaingangs). O objetivo da proposta de evidenciar a história de povos marginalizados está alinhado à característica multicultural do bairro, “os negros merecem saber sua história, os indígenas merecem saber sua história” afirma a professora.
O educador Antonio Marcos dos Santos Silva, autor da proposta “Combate ao racismo nas redes sociais: a encruzilhada entre o virtual e o real”, sugere aos ambientes educacionais um processo de enfrentamento à injustiça racial por meio da identificação do racismo, entendendo que a responsabilidade diante desse desafio não é exclusiva da população negra: “o racismo é um sistema, ele se modifica com o tempo, então nossa atuação deve acontecer de várias formas. Não é uma luta só das pessoas negras, é importante para todas as pessoas que acreditam em uma sociedade mais justa, menos desigual”, disse o coordenador de turma numa escola da rede pública do Rio de Janeiro e integrante do Coletivo Resistência Valença, localizado na cidade do mesmo nome no sul do estado. Durante o debate, Silva falou sobre fatores que fomentam as desigualdades e diminuem nossas potencialidades: “quando a gente tem uma população, ou certos grupos, que são privados, limitados de acesso, a gente contribui para uma sequência de desigualdades que distanciam a gente do que poderíamos ser”.
Além de estratégias para compreensão das problemáticas do racismo, também foi proposto um plano de aula sobre reconhecimento e valorização das produções musicais negras no cenário brasileiro. Francine Nazário da Silva apresentou o plano “Influências africanas na música brasileira”, o trabalho consiste no desenvolvimento de podcasts a partir de pesquisas a respeito da cultura afro-diásporica para ampliação do repertório sobre a musicalidade brasileira. A professora de Criciúma, Santa Catarina, acredita no processo de ensinamento e aprendizagem por meio da construção autônoma dos alunos, através da busca por informações e produção de conhecimento a partir das reflexões conjuntas em sala de aula: “gostaria de reforçar que nós devemos ser nossos próprios algoritmos (…) esse trabalho vem muito nesse sentido, de buscar. O aprendizado acontece na busca do aluno e da aluna. Então esse material didático pode ser construído pelo aluno, essa busca oportuniza inúmeras reflexões e ensinamentos” conclui Francine.
A autonomia como parte da metodologia de ensino também permeia a proposta “Produto Educacional Digital – RPG a cultura Iorubá” apresentada por Rosemary Rodrigues de Oliveira, da cidade de Jaboticabal – São Paulo. O trabalho aborda a significância e riqueza do desenvolvimento de produtos educacionais digitais para ensino de práticas antirracistas e compartilhamento de conhecimento sobre o povo negro. A educadora conta: “sou professora em uma universidade pública no curso de licenciatura em ciências biológicas (…) não adianta eu só falar sobre as questões raciais e eles não conseguirem articular isso no cotidiano futuro deles dentro de uma sala de aula. Então trago a literatura que fala sobre a importância das relações etnico raciais no ensino das ciências e biologia, mas toda essa literatura mostra justificativas, e não a metodologia, então a proposta dessa didática é construir essa metodologia, os alunos desenvolvem produtos educacionais, jogos, livros, podcasts”.
A cientista social e especialista em Educação, Relações étnico-raciais e Cultura, Odara Dele, também colaborou para composição do repositório com o plano de aula “Mulheres negras no mundo da tecnologia”. O trabalho propõe aos alunos a promoção de ações lúdicas com ferramentas digitais, atuando no reconhecimento das contribuições científicas, intelectuais e econômicas das cientistas negras na sociedade contemporânea com estudo das suas trajetórias e produções.
Caminhada São Paulo Negra
Para completar o dia de atividades, que faz parte da programação que marca o mês da Consciência Negra, a Ação Educativa recebeu, pela manhã, o coletivo “Guia Negro”, que realizou uma visita guiada pelo centro da cidade de São Paulo, apresentando e discutindo marcos e omissões sobre a história do povo negro na cidade.
O roteiro da Caminhada São Paulo Negra levou os educadores a vários pontos da capital paulista que normalmente são vistos por uma perspectiva estratégica de apagamento histórico da população negra que vivia no local. O jornalista Guilherme Soares e o fotógrafo Heitor Salatiel revelaram momentos que marcaram a cidade, protagonizados por pessoas negras, mas que hoje são invisibilizados pelo racismo estrutural. As descobertas do grupo de docentes começou no bairro da Liberdade, região nomeada por um acontecimento envolvendo a condenação do militar Francisco José das Chagas, liderança negra conhecido como Chaguinhas, punido por liderar uma reivindicação por melhores condições de trabalho em 1821. O bairro, com características da cultura japonesa, tem poucas evidências da sua história multicultural.
A caminhada seguiu apresentando importantes personalidades negras, imortalizadas no centro de São Paulo, seja na arquitetura, por meio do trabalho impecável do arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira, conhecido como Tebas, presente na Capela dos Terceiros do Carmo e Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, seja na escrita sobre a cidade, registradas pela escritora Carolina Maria de Jesus, que relatava especialmente a respeito da favela do Canindé, zona norte de SP. Os líderes quilombolas Zumbi e Dandara dos Palmares, o jornalista e advogado Luiz Gama, patrono da abolição da escravidão no Brasil, também tiveram lugar nas discussões sobre o racismo em São Paulo, já que suas homenagens são mais simples do que a maioria das grandes estátuas em referência às pessoas brancas.
O encontro possibilitou reflexões essenciais sobre o papel da Educação para a transformação desse cenário de invisibilidade causado pelas injustiças raciais. Guilherme Soares ainda enfatizou a relevância da participação dos educadores na Caminhada São Paulo Negra. “É importante que os educadores estejam nessa experiência para levar essas práticas e esses aprendizados para a sala de aula, para tentar fazer com que a tecnologia nos atenda, que a gente tenha um reconhecimento facial que atenda a população negra, que a gente tenha outras tecnologias que estejam também levando em conta nossa história, nosso jeito de falar das coisas e a nossa possibilidade de narrativa”, compartilhou o fundador do Guia Negro.
Fechando a noite, logo após o debate, foi a vez do show de Albert Magno, artista trans baiana, que trouxe um estilo vocal característico e singular, através da sua atitude, musicalidade e presença de palco.
A centralidade da educação no enfrentamento ao racismo no ciberespaço
O Repositório é resultado do processo de atuação e levantamento de práticas pedagógicas antirracistas no contexto das TDICs. Ao todo 24 propostas foram selecionadas, a partir do envio colaborativo de planos de aula e práticas educacionais por escolas, universidades, organizações da sociedade civil, coletivos, movimentos sociais, educadores e educadoras. Uma comissão de especialistas composta por Sil Bahia (PretaLab), Lúcia Xavier (CRIOLA), Glenda Dantas (Rede Negra sobre Direitos e Tecnologias Digitais) e Luzineide Borges (UFSC) colaborou no processo seletivo.
Juliane Cintra, coordenadora institucional da Ação Educativa, explica que o lançamento do Repositório junto ao debate, antecedendo o dia da Consciência Negra, tem o simbolismo de “reforçar o compromisso e, também, a compreensão da Ação Educativa de que a luta antirracista passa por práticas de formação e conscientização da sociedade em múltiplas frentes, inclusive no ciberespaço”. Além do acesso virtual ao Repositório, os projetos selecionados serão publicados em uma versão impressa, no formato de cartilha, em dezembro.
“O mapeamento de práticas pedagógicas e de tecnologias antidiscriminatórias, que ganha destaque com a disponibilização deste repositório, mostram que não só é possível, como é necessário, construir uma visão crítica sobre o consumo de informação no ciberespaço, de como impedir que a internet seja mais um espaço de violência e discriminação contra pessoas negras e outras minorias”, salienta.
Tarcizio Silva, assessor da equipe de TI da Ação Educativa e bolsista da Fundação Mozilla, parceira na iniciativa, avalia que é bastante preocupante a educação digital antirracista não ter centralidade no planejamento político do país e, mais grave ainda, praticamente ser ignorado no planejamento pedagógico institucional das universidades, escolas e demais centros de formação.
Contudo, ele aponta – e o repositório reforça esta percepção – que a ausência de uma política educacional institucional não significa que educadoras e educadores ou grupos ligados à educação estão ausentes desse debate. Os ciclos de formação e debates promovidas pela Tecla, o diálogo com organizações e movimentos parceiros, indicam que o debate em torno dos direitos digitais ganham mais ressonância.
“O repositório vem para cumprir o importante papel de conectar educadores, programadores e demais agentes que compreendem a centralidade dessa política. O nosso desejo é promover o encontro entre essas práticas, disseminá-las e remixá-las. A educação em direitos digitais é central na luta antirracista”, declara.
“Tá online?”: contribuições do projeto TECLA
Para Juliane a afirmação de que “milhões de pessoas têm acesso à internet no Brasil” não é suficiente por si só. “Comemora-se o crescimento do acesso à internet, mas o que significa isso? Acessar as redes sociais é suficiente? Outras ferramentas, outras possibilidades de criação, de conteúdo e de informação não foram apropriadas e disseminadas da mesma forma, por quê? O que faz com que discursos racistas e discriminatórios disseminem-se com tanta facilidade? ”, questiona.
Os dois anos de atividades do projeto, explica Juliane, permitiram um olhar crítico e detido sobre como o ciberespaço é uma dimensão central da esfera pública hoje, por isso é essencial que a sociedade preocupe-se em como se dá a convivência e as relações neste ambiente.
“É preciso estabelecer processo de educação, de regulação, que cuidem de criar e promover direitos, bem como também de defendê-los. É bastante preocupante o ciberespaço tornar-se um espaço dominado por fake news, discursos de ódio, que praticamente criam uma realidade paralela”, alerta.
Para Tarcízio, a questão racial na internet ganha mais destaque quando parcela da sociedade começa a perceber que o ambiente digital tem potencializado a disseminação dos discursos de ódio, permitindo que grupos racistas e segregacionistas se organizem e se fortaleçam.
“O racismo digital manifesta-se de diversas formas, seja na limitação do acesso de dispositivos e até mesmo do sinal de internet para as pessoas negras, seja na ausência de negras e negros nos espaços de formulação das políticas públicas ligadas ao tema”, observa.
Próximos passos
A disponibilização do repositório simboliza o encerramento da primeira fase da iniciativa Tecla, à qual, através das suas três linhas de atuação: “formação”, “informação” e “pesquisa” tem permitido, explica Juliane, que a instituição posicione-se de maneira construtiva e propositiva dentro do debate público sobre tecnologia e justiça racial.
Entre as iniciativas já promovidas, a Tecla produziu um estudo apontando que tecnologias digitais que usam procedimentos algorítmicos, automatização e inteligência artificial podem promover a manutenção e até mesmo a intensificação do racismo estrutural no Brasil. A pesquisa foi fruto de uma parceria da Ação Educativa com A Rede Negra em Tecnologia e Sociedade, com o apoio da Fundação Mozilla.
Outro destaque da atuação foi a série de encontros e rodas de conversa “Diálogos Antirracistas sobre Tecnologia e Sociedade”, que abordaram a questão racial, tecnologia e direitos digitais nos mais diversos recortes e enquadramentos. Todos os encontros, que contaram com a presença de pesquisadores, professores e militantes da área estão disponíveis no nosso canal.
Em parceria com o Centro de Formação da organização, foram lançados três cursos: “Internet e Desigualdades”, “Bem-Viver na Internet” e “Racismo Algorítmico”. Voltados a educadoras/es, ativistas e estudantes de todo o país, o formato online das formações permitiu alcançar redes de todo o país.
“Compreendemos que a luta antirracista passa pela afirmação e defesa dos direitos digitais, é preciso estar inserido nesse debate. O projeto Tecla reforçou pra gente o quão importante é este espaço no debate público e na promoção de direitos”, afirma. “Ao longo dos anos, os movimentos sociais criaram espaços de democratização de políticas como as conferências e audiências públicas. Temos o desafio de criar ferramentas semelhantes no ciberespaço!”, conclui Juliane.