Manter viva a memória da luta pelos direitos humanos, é uma tecnologia indispensável para um futuro de efetivação desses direitos. Essa é uma das sínteses da mesa “Saber o passado, mirar o futuro”, que fez parte da programação de aniversário de 30 anos da Ação Educativa. O evento promoveu o encontro da deputada federal Erika Hilton, da escritora e jornalista Eliana Alves Cruz e da coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa, Edneia Gonçalves, no Sesc Pompeia, no último dia 03 de dezembro.
Ednéia destacou que utilizar a “tecnologia da memória” é uma ferramenta central na história de três décadas da Ação Educativa. “Olhar para trás, colher conhecimento e olhar para frente para enxergar onde queremos chegar. Isso é a tecnologia da memória. É um conceito que perpassa a ideia de ‘começo e meio começo’, do ancestralizado Nego Bispo, está também presente no Adinkra Sankofa”, lembra.
A coordenadora institucional da Ação Educativa, Magi Freitas, ressalta que a organização “não sabe (e nunca quis) trabalhar sozinha” e, graças a isso, afirma, a entidade conseguiu alcançar três décadas de existência, como um espaço de luta e construção de uma agenda democrática.
“Desde que começamos a preparar para os 30 anos, a gente vem refletindo muito sobre a nossa própria história e fazendo diálogos intergeracionais. Nos que estamos na organização, fazemos parte dos que fundaram a organização. Por isso tem sido importante refletir sobre a mudança intergeracional que virá. É dentro dessa reflexão interna, que ‘ saber o passado, mirar o futuro’ tem um significado ainda mais profundo”, avalia.
No mesmo sentido, Edneia pontua que a história da entidade sempre teve como estabelecer relações de troca e de diálogo com outras entidades, com movimentos sociais, educadores, ativistas e todos aqueles dispostos a se engajar na luta por um sociedade democrática e igualitária.
Ela explica que, sem essa habilidade, a Ação Educativa não teria desenvolvido a capacidade de entender que a luta por uma outra sociedade passa pela fortalecimento dos outrossim, que defender a democracia, passa por não se esquecer quais processos e histórias nos trouxeram até aqui, compreender que as disputas e as opressões existentes atualizam-se.
No mês em que se comemora, 74 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esta matéria traz um breve resumo do último evento de comemoração dos 30 anos da Ação Educativa. A partir das experiências da deputada Erika Hilton, da escritora Edneia Alves e da coordenadora da Ação Educativa Edneia Gonçalves, propõe-se uma reflexão do lugar e da importância da defesa e da luta pelos direitos humanos nos dias de hoje e para os dias futuros.
legados individuais e coletivos
Para Erika Hilton, ser uma mulher negra e trans é carregar tanto o legado de resistência quanto os estigmas impostos por séculos de opressão. “Estando nesses corpos que já nascem marcado pela raça, pelo gênero, pela sexualidade e etc, nós carregamos todo esse peso. Independente da posição que tomamos, isso está na gente”. Ela recorda que parte do processo da sua tomada de consciência passa pela Ação Educativa, pelos aprendizados, relações e caminhos traçados a partir da sua relação com a entidade.

“Eu sou mulher negra trans, deputada federal, dentre os vários caminhos que me trouxeram até esse lugar, a experiência que a jovem Erika teve quando conheceu a Ação Educativa atráves do projeto ‘hub de jovens mulheres negras’, e com as trocas que tive com Juliane Cintra (Coordenadora da Unidade de Projetos Especiais da Ação Educativa) e a Raquel Luanda (Supervisora do Centro de Eventos). Tudo o que aprendi sobre política, organização social, militância…sobre o que é ser uma mulher negra, são ensinamentos essenciais para chegar onde cheguei, com a bagagem que, hoje, tenho”, pontua Hilton.
A jornalista Eliana Alves ressalta que devemos tomar consciência de que “cada um de nós tem um legado para deixar”, a questão é descobrir qual é esse legado e como superar as imposições do dia a dia que impedem a construção e formação de quem somos.
“É urgente que a gente se reconheça, que a gente olhe para nossa verdade histórica como povo e para nossa verdade histórica pessoal, a trajetória de cada um, que a gente se reconheça, e que a gente comece, desde o quanto antes, a construir e a realizar tudo que a gente tem vontade de realizar. Esse desejo, essa utopia é muito bonita no papel, muito bonita no filme, é uma palavra bonita, utopia, mas utopia também é algo que você não chega, que você não alcança, e a gente está precisando alcançar muitas coisas”, aponta Eliana.
A escritora confessa que já questionou a si mesma, se criar histórias e personagens que têm suas trajetórias marcadas por um passado de opressão não seria um tema “repetitivo”, mas que a recepção do público – principalmente aqueles que são representados nas suas histórias – demonstra que, na verdade, faltam histórias sobre os ‘oprimidos’, as pessoas querem se enxergar nas páginas dos livros, ler suas dores, mas também as suas vitórias, a sua identidade retratada.
“Uma vez me apresentaram uma planta arquitetônica da cidade de São Paulo do perído da escravidão, comparando com os dias de hoje. Onde era a Casa-Grande, hoje é um apartamento de luxo. A correspondência assusta. A realidade é que o sistema só foi atualizado. A gente precisa apontar, denunciar como o passado ainda determina tanto do nosso presente e do nosso futuro”, lamenta Alves Cruz.

Essa reflexão de como a história “passada” ainda é atual, explica, segundo Erika, parte do incômodo que ela causa no Congresso, porque a sua presença ali, demonstra uma fissura em um processo histórico que sempre reservou poder para homens brancos, herdeiros e poderoso, um grupo que é o oposto de quem ela é.
“A minha presença naquela Casa legislativa, significa que o sistema falhou. Eles se perguntam ‘Como essa mulher, que o sistema marcou para morrer, está viva? Como ela está viva aqui, ocupando uma cadeira, um espaço que sempre foi nosso?’. É por saber disso que faço tanta questão de falar, de demonstrar, de forma consiste e embasada, que a minha presença ali tem o objetivo de incomodar mesmo”, afirma a eleita melhor deputada federal, Erika Hilton.
Para Eliana, a consciência demonstrada por Erika de que a sua presença no Congresso nacional não ‘se limita’ a ela, mas representa outras e outros iguais a ela, é um exemplo que deve ser reproduzido por todos nós.
“A gente precisa entender que a nossa vida é para além da gente. Eu sempre gosto de lembrar de Luiz Gama. Ele lutou pela abolição, lutou pela libertação de centenas de escravizados, mas não viu a abolição acontecer. Mas se ele não tivesse feito aquela luta lá, a abolição não teria acontecido. Assim como a Erika sabe que, enquanto uma mulher trans negra, sua presença significa muito mais, a nossa história, também é assim, nos espaços que estamos ocupando”, declara Eliana.
Ednéia pontua que a trajetória política e ações de mulheres como Erika e Edneia são exemplos de como é possível, apesar de desafiante, construir lutas coletivas alinhadas a trajetórias pessoais.
“Esse trabalho que a gente faz com a educação, com a cultura e com a juventude, há 30 anos, é também uma forma de marcar a posição do lugar importante de reafirmar a nossa vocação democrática. A defesa da democracia e dos direitos humanos, faz parte da história da Ação Educativa e é um dos nossos mais importantes legados”, conclui Ednéia.
Texto: Paulo Monteiro
Fotos: @maludacio