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“Nunca vimos tragédia pior na Educação do Estado de São Paulo”, diz professor Fernando Cássio sobre o governo Tarcísio

Em entrevista à Iniciativa De Olho nos Planos, professor e pesquisador defende que a atual gestão impõe sua agenda ignorando quaisquer marcos legais  e que incapacidade da União em conduzir políticas educacionais deixa espaço para estados ganharem protagonismo

Sob uma política econômica de austeridade fiscal que prioriza pagamentos de dívida pública ao invés de investimento em áreas sociais, a União tem perdido seu protagonismo na condução de políticas educacionais. Quem preenche essa lacuna são os estados, fazendo com que a agenda de governadores ganhe relevância e que existam grandes disparidades entre unidades federativas. Essa é a análise que Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação da USP, fez do atual contexto da política educacional brasileira. 

Cássio, que integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha), conversou com a Iniciativa De Olho nos Planos sobre os retrocessos no estado de São Paulo, seguidamente denunciados pela REPU, e como eles se relacionam com o contexto nacional. Alertando para o avançado processo de privatização da educação, o pesquisador reforça que, com a limitação financeira, o governo federal não vem conseguindo reverter os retrocessos dos últimos anos, como a militarização, a plataformização e as mudanças trazidas pelas reformas do ensino médio. 

A entrevista, editada, pode ser lida abaixo: 

[De Olho nos Planos] Fernando, a REPU tem produzido muitos dados sobre diversas políticas educacionais – especialmente, mas não só, no estado de São Paulo. Olhados em conjunto, o que é possível aferir? Para onde a educação do estado de São Paulo está caminhando? 

[Fernando Cássio] A REPU vai completar 10 anos no ano que vem, então há uma década realizamos análise de política educacional no estado de São Paulo, contemplando vários governos. Nesse tempo, vimos várias coisas: reorganização sistêmica da rede – com fechamento de classes noturnas, expulsão de  estudantes do ensino médio para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) –;  várias formas de privatização, entendida em um sentido amplo – o recente leilão de escolas, a participação do setor privado na tomada da decisão da política educacional, mecanismos de financeirização da educação pública, e a militarização, que não deixa de ser um processo de privatização. Além disso, observamos processos de indução de desigualdades e exclusão na rede estadual, que são causados pelas próprias políticas educacionais. Por exemplo, o Programa Ensino Integral e a reforma do ensino médio, políticas educacionais que, dentro de um sistema de ensino que deveria ser universal, criam segmentos internos, excluindo sempre os mais vulneráveis. 

É um conjunto enorme de dados que aponta para um estreitamento do direito à educação. O que é triste, porque estamos falando de uma década de políticas públicas. Um período inteiro do Plano Nacional de Educação, de reformas do ensino médio, de pacto de alfabetização, EJA, entre outras políticas nacionais, estaduais e municipais que, num balanço, levaram a um estreitamento e não à expansão do direito. 

[De Olho nos Planos] Então esse é um processo que não vem de agora? 

[Fernando Cássio] Vários dos nossos estudos ao longo do tempo têm mostrado esse estreitamento, e ao longo de vários governos também. Não é privilégio de um ou de outro. O que não significa que o problema não tenha se acentuado recentemente. 

[De Olho nos Planos] Como assim? 

[Fernando Cássio] A REPU recentemente fez uma pesquisa financiada pela FAPESP que analisou a educação no estado de São Paulo nos 28 anos de governo do PSDB. Notamos um processo de profunda tecnocratização da rede ao longo desses 28 anos, além de burocratização, centralização e uma forma bastante particular do estado de encarar o princípio da gestão democrática. Esse último ponto é inclusive uma de nossas preocupações: entender como a democracia é violentada, capturada ou cooptada dentro das escolas. 

Tendo dito isso, é inegável que a partir de 2018-19, quando entram João Doria Jr. e seu secretário Rossieli Soares, a situação degringola muito mais. Doria se elegeu com uma plataforma bolsonarista e se manteve nesse lugar, embora em um certo momento tenha tentado se colocar numa posição diferente de Bolsonaro, especialmente durante a pandemia. Mas do ponto de vista de política educacional, o governo Doria era um governo reacionário, que censurou debates de gênero e sexualidade em escola utilizando a Base Nacional Comum Curricular como justificativa, que perseguiu professores e tentou distorcer resultado de avaliações, que levou o programa PEI a uma escala que era incompatível com a rede, levando-a ao colapso: em 2022, observamos falta de vagas no primeiro ciclo do ensino fundamental na rede municipal de São Paulo, o que não era visto há 30 anos. Foi um reflexo da falta de vagas na rede estadual por causa da expansão do PEI a mais de 40% das escolas.

Mas a política brasileira caminhou para uma direita reacionária e não meramente conservadora, e isso se reflete na mudança de Doria para o Tarcisio. Do ponto de vista da educação do estado de São Paulo, nunca vimos tragédia pior [como no governo Tarcísio]. Os professores nunca estiveram tão desvalorizados, os estudantes nunca tiveram a formação tão vilipendiada, a gestão nunca foi tão desrespeitada, perseguida e intimidada. A agenda do governo Tarcísio/Feder ignora a escola, estudantes, demandas por qualidade, PNE e qualquer outra coisa. 

[De olho nos Planos] Qual seria a marca dessa gestão? 

[Fernando Cássio] Mesmo o Rossieli modulava seu comportamento dependendo de onde estava, o que não existe com Tarcísio e Feder, que agem sem se preocupar, inclusive, se suas ações são legais. E não aceitando as derrotas sofridas no caminho. Essas coisas diferenciam esse governo. É uma natureza golpista mesmo, um desrespeito absoluto a qualquer regra. Não há problema nenhum em exercer o pior negacionismo pedagógico e educacional. E ainda hoje persiste um erro de enquadrar Tarcísio como um político moderado, embora seus discursos, inclusive no último 7 de setembro, não deixem dúvidas de que se trata de um golpista, que não há nada de republicano nele. Estamos falando de uma pessoa autoritária.

Em relação às políticas educacionais, as plataformas são a grande política do governo de São Paulo hoje. É o que eles [Tarcísio e o secretário Renato Feder] têm de fato como central. Todo o resto – slides, abandono do livro didático, até a militarização – está “em volta” das plataformas. O secretário da Educação, Renato Feder, é um empresário que ganha dinheiro vendendo tablets e computadores e que identificou que a digitalização da educação pública é um negócio que alimenta um mercado constante e perene. Só a rede estadual de São Paulo tem 3,6 milhões de estudantes, e somando todas as redes no estado o número chega a 11 milhões. 

última nota técnica que nós [REPU] lançamos demonstra que o uso das plataformas não tem correlação estatística com os resultados da aprendizagem nas avaliações em larga escala estaduais. Isso é super relevante, porque tira do governo de São Paulo o argumento de que as plataformas foram contratadas, compradas e as pessoas estão sendo obrigadas a usá-las porque melhorariam os resultados das escolas. Isso simplesmente não acontece. E, portanto, não existe qualquer argumento pedagógico-educacional válido para a política de plataforma como é imposta na rede hoje. Não questionamos o uso da tecnologia nas escolas nem a existência de ferramentas pedagógicas, mas sim o tipo de relação que se construiu com as plataformas. Obrigar estudantes, professores, diretores a passarem todo o tempo nelas, ou seja, sequestrar o tempo pedagógico da escola e da aprendizagem e colocar a favor de uma plataforma privada, é inadmissível.

[De Olho Nos Planos] Em comparação com o cenário nacional, você entende que o processo do estado de São Paulo é diferente ou segue a mesma tendência? Você acha que São Paulo reflete ou influencia a nível nacional? 

[Fernando Cássio] Boa pergunta. São Paulo concentra 20% da população do país, é muita coisa. Por isso, a maior parte das interpretações é a de que o país segue São Paulo. Não acho que isso seja uma verdade absoluta, porque a política educacional acontece de maneira articulada. No âmbito federativo, há uma difusão de políticas de São Paulo para outros estados, de outros estados para São Paulo e muita influência de entes federados em outros. É preciso olhar caso a caso. 

No caso da reforma do ensino médio, por exemplo, uma política nacional aprovada em 2017 e efetivamente implementada a partir de 2021, São Paulo saiu na frente. E é possível identificar influências de São Paulo nas reformas de outros estados. Já na educação em tempo integral, São Paulo foi influenciado por Pernambuco para criar o PEI. É que, dado o tamanho do modelo em São Paulo, rapidamente o programa ganhou proeminência e ficou parecendo que foi criado ali. E, claro, porque há modificações em relação ao modelo pernambucano: o paulista é bem mais excludente, o PEI foi feito para criar uma subrede de ensino um pouco mais elitizada, contemplando estudantes com nível socioeconômico mais elevado que produziriam melhores resultados. A ideia era segregar mesmo, tirando estudantes mais vulneráveis, negros e negras, periféricos, e mantendo estudantes que precisam menos da escola pública. Isso levou a um colapso da rede, porque para onde vão os estudantes que estão sendo expurgados dessas escolas? Vão para as escolas do entorno, que ficam superlotadas, ou simplesmente abandonam os estudos.

Esse é um exemplo que mostra como São Paulo se inspira numa política de fora e a leva para outro lugar. Mas não sou ingênuo de achar que São Paulo não tenha uma influência maior. Claro que tem, até porque tem mais dinheiro. Aí chegamos num ponto interessante, porque hoje são os estados que mais conduzem as políticas educacionais no Brasil. 

[De olho nos Planos] Como assim? 

[Fernando Cássio] O Ministério da Educação (MEC), sobretudo nos governos Temer e Bolsonaro, desapareceu. No governo Bolsonaro, sobretudo, os ministros vinham a público somente para falar absurdos e violar direitos humanos, mas do ponto de vista de política pública muito pouco foi produzido. Até na militarização o número de escolas militarizadas foi maior nos programas estaduais do que no nacional. E por quê? No fundo, por causa do ajuste fiscal

O ajuste fiscal comprime a capacidade do Estado de fazer política social em todas as áreas. E isso se reflete no MEC, que perde sua capacidade de induzir políticas nos municípios e estados, porque não há dinheiro para construir escola, creche, implantar escola em tempo integral. Depois da Constituição de 1988, a União foi ganhando uma capacidade muito maior – até porque é um ente federado mais rico – de induzir política pública, de colocar sua agenda. Aquilo que a gente se acostumou a ver ao longo do tempo. Mas quando esse dinheiro desaparece, quando o governo só se compromete com dívida pública e desaparece o dinheiro para fazer política social, a União sai do jogo. Aí quem assume o tabuleiro são os governadores, os estados. O que vimos nos governos Temer e Bolsonaro é um progressivo apagamento da União e um soerguimento dos estados. 

[De olho nos Planos] E no governo Lula?

[Fernando Cássio] O governo Lula está numa situação muito difícil porque o governo está algemado pelo ajuste fiscal, mas ao mesmo tempo há pessoas no MEC querendo fazer política pública. Então há uma série de programas: pacto da EJA, a Escola das Adolescências, o próprio Pé de Meia. Tirando esse último, que é um programa que de fato tem um custo mais elevado, todos os outros programas custam pouco. São programas basicamente de assistência técnica, de formação à distância. O que o MEC está fazendo é tentar manter uma agenda e um certo movimento na política, só que sem condições de coordenar a política educacional porque não tem dinheiro. Pra coordenar tem que ter dinheiro. 

Então no governo Lula quem vai fazer política educacional são os governadores, os estados. E aí o estado de São Paulo vai levar vantagem, porque é rico. Nisso, vemos o governo de São Paulo distribuir as plataformas para os municípios interessados, vemos estados como Bahia e Maranhão em que os governos estaduais, inclusive de esquerda, militarizam escolas municipais. Há hoje no Brasil um movimento intenso de governos estaduais fazendo políticas nos municípios para suprir uma lacuna da União. 

[De olho nos Planos] Pode falar mais sobre isso da militarização? 

[Fernando Cássio] É um problema super sério. E é comum fazerem o diagnóstico de que o povo é conservador nos municípios e que as pessoas querem escolas militarizadas. Eu não concordo com isso. Não concordo porque estou estudando esse tema e sei que tem município trocando escola militarizada por escola em tempo integral, por sistema S, por privatização. Tendo universalizado o acesso às escolas, as pessoas já não querem somente escola; querem escola boa. E se o Estado desmonta a escola pública e a escola militarizada é vendida como solução, as pessoas vão querer. 

Isso é para dizer que a União teria uma função importantíssima nesse momento para reverter retrocessos, mas não está conseguindo, ao menos na educação. E aí os governos estaduais nadam de braçada. E aí o governo de São Paulo, pela sua capacidade técnica, tamanho e força econômica, vai produzir os maiores retrocessos. O que vemos em São Paulo é retrocesso em cima de retrocesso e com pouca capacidade de enxergar alguma coisa além disso. Embora reajamos muito, porque há um movimento social, sindicato, sociedade civil muito pujantes no estado, além do Legislativo e de órgãos de controle como Defensoria Pública, Ministério Público e Tribunal de Contas. O programa de militarização do Tarcísio já foi adiado quatro vezes.

[De Olho nos Planos] Sobre a reforma do ensino médio: uma das notas mais recentes da REPU compara as cargas horárias antes da reforma de 2017, durante a vigência do Novo Ensino Médio e após a reforma de 2024, e mostra que São Paulo é o estado que operou a recomposição de carga horária mais desigual e prejudicial aos estudantes, embora isso esteja falho no país todo. É possível dizer que a reforma de 2024 não conseguiu reverter os estragos da reforma de 2017?

[Fernando Cássio] Sim. A reforma de São Paulo ter sido a mais desigual, eu acho que decorre da própria arrogância do governo Tarcísio de não estar nem aí para o que está se passando no debate nacional. O governo de São Paulo fez seis reformas curriculares no ensino médio nos últimos seis anos. É impossível imaginar que é possível construir alguma qualidade na educação pública assim, ou com mais de 700 diretores/as de escola designados saindo do cargo em um ano e meio

Essa nota mostra isso, e que a reforma de 2024 não consegue conter todas as perdas da anterior, mas também mostra os vários problemas da nova reforma. É uma reforma que permite que as redes coloquem coisas estranhas no lugar da formação geral básica, que não lida com desigualdades muito grandes de carga horária de disciplinas e, portanto, de acesso ao conhecimento. Os estudantes do ensino médio da Bahia, por exemplo, têm meio ano a menos no ensino médio do que no resto do Brasil. Os estudantes do Amazonas, ¾ de ano a menos. 

[De Olho Nos Planos] E a privatização, como vem se inserindo na rede pública ou nas políticas educacionais? 

[Fernando Cássio]  A privatização é um assunto bem amplo. O que menos acontece quando se fala de privatização é o Estado vender escola pública, porque a escola pública em si não dá lucro, é um negócio complicado, cheio de conflitos. Pelo contrário, as pessoas não querem se responsabilizar pela escola. Então, ao falar da privatização da educação pública, raramente falamos da venda da escola e sim de outros mecanismos. 

A privatização na educação assume várias frentes: a contratação do setor privado para fazer material, currículo, gestão, ofertar cursos e ensino técnico de baixa qualidade; a reforma do ensino médio abriu caminho para isso, por exemplo. Mas pode ir além disso. Pode se dar por mecanismos de financeirização do orçamento público da educação. O próprio programa Pé-de-Meia é financiado com um fundo patrimonial na Caixa Econômica Federal, que também capta recursos no mercado. Quando o Estado cria um mecanismo financeirizado para fazer o financiamento da política pública, isso também é privatização via financeirização. Há toda uma literatura internacional que vai chamar isso de “financiamento inovador”: várias formas de diminuir a importância do orçamento público para atores privados participarem do financiamento da política mediante recebimento de lucros, juros ou outras compensações. 

A militarização em certa medida também pode ser considerada uma forma de privatização. E é importante tratar disso porque vários elementos trazidos nessa conversa – PEI, escolas militarizadas, além de outros, como educação domiciliar – compartilham essa ideia de romper a universalidade da política pública e criar vários subsistemas dentro do sistema de ensino, à escolha das famílias. É a ideia de “escolha escolar” (school choice), que é, a rigor, uma mercadorização da educação pública, em que você aplica uma lógica e um argumento de mercado, de escolha, pois seria supostamente possível escolher o modelo escolar de preferência ao invés de o Estado simplesmente oferecer atendimento universal para toda a população. É um raciocínio que agrega o discurso conservador e o ultraliberal. A mercadorização também é uma forma de privatizar, inclusive porque não é todo mundo que pode acessar todas as escolas, e isso a REPU já demonstrou de forma cabal para o caso das PEIs. Estudante pobre não fica em escola PEI. A mesma coisa com as escolas militarizadas, que não são para todo mundo. Isso também faz parte do debate da privatização. Aliás, acho que talvez essa seja a face mais nefasta da privatização, porque é o que ninguém vê como privatização. E não tem muita saída fora de um financiamento adequado, fora de uma consciência de que o Estado não pode se retirar do processo. Não dá para deixar as coisas na mão do mercado.

Texto: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

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