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A transformação do silêncio em poesia: feminismos e feminismo negro

No sábado (13/05), o ciclo de formações OcupAção: Jovens em Movimento abordou o tema Feminismos e Feminismo Negro e contou com a presença de Bianca Santana, jornalista e autora do livro “Quando me descobri negra”.

Por Alexandre Suenaga*

Bianca regeu as reflexões e os afetos que circularam entre as participantes, promovendo um território de acolhimento, confraternização e resistência. Pela singularidade de como a oficina se desenrolou, de forma participativa, optamos por uma proposta diferente de texto, que além de debater o assunto, busca mapear os afetos que circularam no encontro. Dessa forma, apresentamos uma série de colagens, com trechos da fala de Bianca e suas referências teóricas em diálogo com os textos e poesias compartilhadas pelas mulheres que ocuparam a formação.

O feminismo é uma palavra

Definido por Victória Sau, o feminismo é um movimento social e político que pressupõe a conscientização das mulheres como grupo coletivo humano, articuladas em resistência à dominação, exploração e opressão que sofreram e sofrem por parte dos homens e das instituições baseadas no patriarcado.

No entanto, este conceito é estruturado formalmente apenas no final do século XVIII, o que não significa que as mulheres não estavam organizadas antes disso, ou que elas não resistiam ao machismo.

Bianca

Em realidade, há que se ressaltar que “a noção de feminismo é construída no norte do mundo e então, em muitos lugares, esta palavra pode não fazer sentido, o que também não significa que as mulheres não estejam articuladas politicamente em luta.

Bianca

O “S” do plural

Ainda assim, a institucionalização dos conceitos é importante para fazer frente às inúmeras instituições patriarcais já muito bem estabelecidas. E mesmo conceitualmente, como demonstra Mary Nash, o feminismo é uma palavra plural que em suas manifestações mais contemporâneas “constitui um fenômeno histórico complexo, com múltiplas correntes e que não pode se reduzir às manifestações uniformes”. Portanto, o uso do plural “feminismos” problematiza pensamentos hegemônicos dentro do próprio movimento, que de maneira geral é dominado pela narrativa da mulher ocidental branca. Colocar este aspecto em questão não significa deslegitimar as lutas e conquistas deste grupo de mulheres, mas reconhecer que “mulher” também é

uma categoria universal que desconsidera quem nós somos, em nossa diversidade: negras, latino americanas, indígenas, islâmicas.

Bianca

Sojourner Truth, mulher negra, ex-escravizada e abolicionista afro-americana já questionava esta realidade há mais de um século e meio, em seu discurso Ain’t I a Woman? (Eu não sou uma mulher?), proferido na Women’s Convention nos Estados Unidos. Truth diz:

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E eu não sou uma mulher?”

Por que falar em Feminismo Negro? – Silenciamento e asfixia social

Me descobri preta há quase dois anos. Preta não tem idade certa pra começar a sofrer, é lei de nascença sofrer. Ser negra dói. Dói saber que das coisas que você passou ou passa, metade são pelo simples fato de você ser p r e t a. Só uma preta entende outra preta.

Evelyn

O movimento feminista dentro da ótica da mulher rica ou de classe média, ocidental e branca promoveu, sem dúvidas, avanços consistentes na conquista de direitos e da cidadania de muitas mulheres ao redor do mundo, como o sufrágio feminino. No entanto, o contexto da mulher negra, pobre e periférica apresenta urgências que muitas vezes caminham na contramão das demandas que ganham mais espaço na agenda de discussão e luta do feminismo.

Enquanto as mulheres brancas, encerradas no trabalho reprodutivo e doméstico, lutam pelo direto ao mercado de trabalho, a mulher negra enfrenta uma dupla jornada, que inclui os mesmos trabalhos reprodutivos, mas também a responsabilidade de prover o sustento financeiro do lar (em muitos casos, principalmente no contexto brasileiro, exercendo funções reprodutivas no lar das mulheres brancas).

Na abolição da escravidão no Brasil, os homens não tinham trabalho, então nas comunidades de pessoas negras, quem tinha a possibilidade de levar algum dinheiro para casa eram as mulheres.

Bianca

Esta realidade se sustenta até hoje, ainda mais quando analisamos outra violência à comunidade negra que não recai sobre as mulheres, mas que as afeta diretamente: o encarceramento em massa e o genocídio dos homens negros por parte do Estado.

É difícil encontrar uma mulher negra que tenha sido cuidada pelo pai. Não estamos comparando quem sofre mais, estamos falando de uma questão social, os direitos que não podemos exercer por ser negra e mulher.

Bianca

Como aponta Sueli Carneiro:

“A mulher negra é a síntese de duas opressões, de duas contradições essenciais. A opressão de gênero e a de raça. Isso resulta no tipo mais perverso de confinamento, se a questão da mulher avança, o racismo vem e barra as negras. Se o racismo é burlado, geralmente quem se beneficia é o homem negro. Ser mulher negra é experimentar essa condição de asfixia social”.

A solidão da mulher negra é uma chaga passada de gerações em gerações ao longo dos séculos. Nos vemos sozinhas amenizando as dores já estabelecidas na condição de mulher negra. Bebemos forças para poder regurgitar nossos próprios medos, e não nos dão direito de afagar as dores uma das outras, a regra é: seja forte… Sozinha!

Jéssica

Ancestralidade e a busca por referências não colonizadas

Ai é assim, mulher preta até parece que não pode errar
Grita sua branquitude em mim,
mas com certeza não é isso que vai me fazer parar
Porque eu não brigo por espaços, eu luto por fé na emancipação
A minha raiz ancestral dá frutos no corpo e se estende em minhas mãos
Com elas, pra elas, as manas, favelas, são becos, vielas
Aos santos, minha vela

Aline

 Além da violência física e das práticas racistas mais diretas, as mulheres negras são vítimas de um silenciamento cruel, que as afasta de suas conexões ancestrais, seja por meio do apagamento das narrativas de resistência e de lutas protagonizadas pelas negras, seja na condenação das matrizes de pensamento e existência de raiz africana, como a Umbanda e o Candomblé. Diante disso, dentro do próprio movimento de luta política, fica difícil se orientar,

a militância embranquece.

Aline

Muitas vezes a gente busca nos livros e em referenciais teóricos estrangeiros validações e respostas para coisas que estão ao nosso lado.

Bianca

E pensando nisso, ainda que reconhecendo a legitimidade e importância das teorias e conceitos vindos dos Estados Unidos e da Europa, Jurema Werneck, Sueli Carneiro e Cristiane Cury buscam referências não colonizadas, conectadas à ancestralidade dos povos africanos. A figura das Yabas (Orixás femininos: Yansã, Oxum, Yemanjá e Nanã) são um exemplo de referência riquíssima sobre as inúmeras possibilidades que “ser mulher” carrega. Elas são “Ialodês”, característica que “reafirma e valoriza a presença e a ação das mulheres individual e coletivamente nos espaços públicos, sua capacidade de liderança, de ação política”, explica Jurema.

As Yabas não só trazem à tona o protagonismo feminino, mas demonstram como esta atuação pode se dar em diferentes matizes: de forma assertiva, guerreira, mas também afetuosa, delicada, sensual, tendo ou não homens e mulheres como parceiros e parceiras, tudo isso no mesmo corpo.

Aquela menina negra que desde os nove anos alisava o cabelo em busca de uma identidade branca, se reencontra com a sua ancestralidade e renasce em corpo de mulher e alma ancestral. Aos poucos, depois dos meus vinte e poucos anos, consigo me afirmar como mulher negra, a assumir meu cabelo black e crespo contemplá-lo, a pensar o sentido da minha vida neste mundo e também a me posicionar diante de situações discriminatórias.

Viviane

Falar a própria palavra – por trás dos movimentos sociais existem pessoas

E do silenciamento eu digo que já tô calejada
Meu choro me nutre, me movimento até mesmo parada
Um salve a todas as pretas
Que vai além do limite das tretas

Aline

Estamos tratando de assuntos sociais e históricos, mas que no plano individual se relacionam com dores muito profundas.

Bianca

Neste sentindo, nos vemos diante da necessidade de articular a luta política com a criação de territórios nos quais seja possível exercitar a empatia, a troca de afetos e a escuta. O plano social e da subjetividade, a luta de classes e as identidades, o político e o afetivo não são, dessa forma, antagônicos. Na realidade, a criação de pontes entre essas esferas é que permite a criação e a resistência.

A gente que é mulher preta tem uma dificuldade muito forte de falar, de escrever e, sobretudo, de mostrar nossa escrita. Eu sempre escrevi bastante, mas deixava tudo guardado nas gavetas. Quando eu frequentava saraus, eu sempre tinha o desejo de recitar, mas ficava aplaudindo meus amigos. Quando eu li um texto que se chama ‘transformação do silêncio em linguagem e ação’ da Audre Lorde, virou uma chave para mim: se eu não falar, eu vou adoecer. E eu realmente estava adoecendo porque eu não falava.

Aline

 Neste ponto esbarramos com mais uma diferença radical na realidade da mulher negra.

Enquanto, muitas vezes, a luta do movimento feminista é para que as mulheres não sejam vistas como frágeis, para as mulheres negras é uma conquista poder ter um momento de fragilidade.

Bianca

O corpo negro, bombardeado por inúmeras representações racistas nas narrativas hegemônicas, evoca no imaginário social a ideia de violência. As mulheres pretas se veem compelidas a adotar uma postura de força e ainda são culpabilizadas como agressivas, indispostas ao debate.

É um tamanho de dor tão grande que a gente precisa mesmo colocar a carapuça de forte. Por que se não, como a gente vive? Mas o quanto isso não é uma prisão que não permite que eu acesse quem eu sou, na minha subjetividade?

Bianca

Tem dia que não dá para lidar com isso tudo, não importa se você for a pessoa mais empoderada que é referência para as outras, tem dia que não dá. Tem dia que você só se sente uma merda falha que falhou na militância interna e externa e só quer desistir e sumir de tudo. Ainda mais com todo esse estado crítico do país, privatização dali, reforma de lá, congelamento de cá. Junta tudo e realmente não dá…

Evelyn

Uma história TAMBÉM de resistência

Só conhecemos a história da desgraça das mulheres negras, que realmente existe, só que se a gente só consegue olhar para isto, fica difícil ter força. E existem tantas histórias de potência e resistência.

Bianca

O terceiro encontro do ciclo OcupAção foi, ele mesmo, uma demonstração e uma experiência do quanto existem mulheres criando e resistindo. Mulheres que, apesar das adversidades, colocam sua palavra no mundo.

Minha alma é preta
Ninguém pode parar meu canto
Não se pode negar esse meu canto negro, para isso visto preto por dentro e por fora
Ecoou um canto forte na senzala
Negro canta, negro dança. Liberdade fez valer

Andreia

Agradecemos a todas as mulheres que participaram da formação e também àquelas que cederam generosamente seus escritos para compor as vozes presentes neste texto. Terminamos com Jéssica, que expressa de maneira poética a força de resistir e de viver.

Mas estamos burlando esse sistema, essa condição não nos cabe, afagaremos a dor das nossas. Vamos usufruir até a última migalha do que nos foi negligenciado. O seu sistema que impõe a minha solidão será embriagado pela comunhão das pretas que se armam para amar e serem amadas.

Jéssica

Em ordem de aparecimento:

Bianca Santana – Jornalista, doutoranda em Ciências da Informação na ECA-USP com o projeto Mulheres negras e redes sociais: apropriação social da informação e construção de identidades. Autora do livro Quando me descobri negra.

Evelyn Arruda – 17 anos, mora e respira Grajaú. Faz parte da coletiva feminista Casmina e do coletivo de comunicação Periferia em Movimento. Militante do movimento negro e feminista.

Jéssica Lana – 20 anos, estudante de Jornalismo. Mulher negra, feminista periférica, colaborou com o 8 de março na quebrada (ação articulada pela Coletiva Fala Guerreira) e frequentadora dos Saraus da Zona Sul.

Aline Anaya – 26 anos, educadora, escreve desde que se entende por gente, porém tirou as palavras da gaveta há apenas três anos no Sarau Versos em Versos, lugar onde recitou pela primeira vez. De lá para cá, vieram muitos saraus, ideias e rimas, acentuando ainda mais seu amor pela poesia. Batuqueira, amante de um bom som e sobretudo do Rap, costuma escrever músicas e adentrar na criação submersa em referências pretas e periféricas. Acredita na arte como instrumento vivo e pulsante de transformação. Atualmente constrói o coletivo Espaço Comunidade.

Viviane Soranso dos Santos – 34 anos, mulher negra, mãe, brasileira e moradora de São Miguel Paulista, zona leste da cidade de São Paulo. Formada em Psicologia pela Universidade Cruzeiro do Sul, com especialização nas áreas de Grupos Operativos pelo Instituto Pichon Riviére e em Saúde Mental para equipe multidisciplinar pela Universidade Paulista – UNIP.  Trabalha no terceiro setor, desenvolvendo ações com adolescentes e jovens; formações de educadores e professores de ONGS e Escolas Municipais. Atualmente trabalha com projetos que articulam ações políticas e juventudes. Também desenvolve projetos relacionados às questões étnicos-raciais e de gênero.

Andreia Oliveira – 37 anos, estudante de Turismo, mulher negra e feminista. 3Ps: Preta, Pobre e Periférica. Colabora na entidade Educafro desde 2000 e faz parte da Marcha das Mulheres Negras do Jabaquara, Marcha do Orgulho Crespo e do Promotoras Legais Populares (PLPS), em Diadema-SP. Começou a fazer poesia quando foi censurada por homens brancos em um evento no ano de 2001. Desde então, expõe seus sentimento e pensamentos, sendo uma das vozes das mulheres silenciadas do Brasil, ecoando em todos os espaços, como ato de resistência e vida.

Acesse os textos completos de Evelyn, Jéssica, Aline, Viviane e Andreia aqui.

Referências:
Victoria Sau – Diccionario ideológico feminista / Editorial Icaria
Mary Nash – As mulheres no mundo: histórias, desafios e movimentos / Editora Ausência
Sojourner Truth – E não sou uma mulher?
Sueli Carneiro – Enegrecer o Feminismo
Jurema Werneck – O Samba segundo as Ialodês: mulheres negras e cultura midiática
Sueli Carneiro e Cristiane Cury – O Poder Feminino no Culto aos Orixás
 Audre Lorde – A transformação do silêncio em linguagem e ação

*Alexandre Suenaga é mestre em Ciências da Comunicação pela USP, onde realizou uma pesquisa-intervenção com jovens de escola pública, investigando suas relações com o mundo do trabalho. Atua e milita dentro dos campos da Comunicação e da Educação, com foco no trabalho com jovens e organizações da sociedade civil.

 

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