Cursinho Popular Transformação possibilita espaço seguro de socialização e fortalecimento de pessoas T
O acesso à educação ainda é um grande desafio para pessoas trans, segundo dados apresentados no levantamento “A Dor e a Delícia das Transmasculinidades no Brasil”, realizado pelo Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) e Instituto Internacional Sobre Raça, Igualdade e Direitos, somente 23,5% dos homens trans concluem o ensino médio, e 12,7% terminam o ensino superior. Com o intuito de enfrentar os processos de exclusão sofridos pela população trans, o Cursinho Transformação, sediado no predinho da Ação Educativa, oferece aulas preparatórias para o vestibular.
Mais de 100 estudantes entre 25 e 35 anos já passaram pelo Transformação, cerca de 10% conseguiu aprovação em vestibulares de ensino superior, vestibulinho de escolas técnicas e ENCEJA (Certificação de Ensino Fundamental e Médio para Jovens e Adultos). O curso oferta auxílio financeiro para transporte e alimentação no local. Estima-se que em 2023 sejam atendidas até 25 pessoas.
A Ação Educativa apoia o Cursinho Transformação desde 2017, proporcionando es educandes e docentes um ambiente seguro e adequado para as aulas, com projetor e acesso à internet. “A Ação Educativa é primordial para a realização do cursinho. Poder contar com esse local já é um primeiro passo para fortalecimento des alunes que, normalmente, são segregades em muitos espaços urbanos”, diz Célia Amaral de Almeida, cientista social e coordenadora pedagógica do Cursinho. Além disso, o Espaço Cultural Periferia no Centro, também localizado no Predinho, promove eventos culturais gratuitos abertos a todos os públicos, “tanto alunes quanto professores têm acesso a várias atividades, o que cumpre também o nosso objetivo de potencializar as diferentes manifestações culturais junto à educação”, enfatiza Almeida ao falar sobre a importância da Ação Educativa para a execução do trabalho feito pelo Cursinho.
Contribuir para que o direito à educação da população trans seja assegurado é um ato político. Raquel Luanda, Supervisora do Centro de Eventos da Ação Educativa afirma que o trabalho realizado pelo projeto está alinhado ao propósito da organização, sendo um local democrático a todes. “Tem sido muito gratificante receber o Cursinho Transformação em nosso espaço, por conta do nosso compromisso político de defesa de direitos e também pelas trocas cotidianas que temos tido com es alunes e professores. A permanência dessa iniciativa em nosso espaço ano após ano, nos indica que estamos no caminho certo”, compartilha Luanda.
Mais do que a oportunidade de aprendizado, a iniciativa possibilita um lugar para socialização de mulheres transexuais, travestis, homens trans e pessoas não-binárias de diversas regiões de São Paulo, passo fundamental para o combate às segregações que impactam tantas áreas da vida dessas pessoas. A educadora e coordenadora pedagógica do Cursinho destaca que “exclusão não é um estado, é um processo que envolve a pessoa por inteiro e em suas relações com os outros. Esse processo, além da carência material, atribui ao excluído o fato de ser aquele que não é reconhecido como sujeito, que é estigmatizado, considerado nefasto ou perigoso à sociedade”. Para mudar esse cenário, o curso propõe a emancipação e inserção social dessa população, sempre alicerçadas em uma perspectiva crítica e aliada ao movimento social.
Sobre as práticas pedagógicas implementadas nos espaços de educação Guacyra Louro nos diz: “Na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, é exercida uma pedagogia da sexualidade [e de gênero], legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras. Esta pedagogia nega a inteligibilidade das vivências dos corpos trans, dos corpos dissidentes”, destaca a cientista social.
Segundo o estudo “Vivências reais de crianças e adolescentes transgêneres dentro do sistema educacional brasileiro”, 77,5% das pessoas trans entre 5 e 17 anos já foram vítimas de transfobia no ambiente escolar. O material desenvolvido pela ONG LGBTI+ do Grupo Dignidade em parceria com a UNESCO também revela que 65% dos autores das violências contra estudantes trans são profissionais da instituição de ensino, sendo 56% professores. Esses dados enfatizam a urgência de pautar publicamente as deficiências na estrutura de ensino no Brasil para que haja uma reestruturação do sistema educacional.
“Presume-se que a aprovação no vestibular seja nosso paradigma de sucesso. Mas será mesmo?”
Além de propor uma transformação no que tange à educação de pessoas T, a iniciativa amplia o repertório e as experiências des alunes por meio de projetos como o Transarau, encontro literário que surgiu como uma forma de ir além do ensino da literatura voltada para o vestibular. Os primeiros Transaraus aconteceram em 2016, na Praça Roosevelt e na Casa das Rosas em São Paulo, possibilitando o compartilhamento de produções poéticas e trocas sobre resistência transgênero.
As oficinas de poesia ofertadas pelo cursinho também resultaram no projeto Antologia Trans, produto literário publicado em duas edições, com o incentivo do Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Prefeitura de São Paulo. A Antologia Trans (2017) reúne 62 poemas com temas que variam entre a experiência do corpo transgênero, sexo, beleza, amor e desconstrução, todos de autoria de alunes, assim como as ilustrações.
Embora seja esperado que o sucesso do curso esteja limitado ao número de aprovações nos processos seletivos para o ensino superior ou técnico, é possível citar esses projetos como importantes frutos do trabalho.
Amanda Paschoal estudou no cursinho em 2015, quando as aulas aconteciam no CRD – Centro de Referência da Diversidade, no centro de São Paulo. Paschoal prestou vestibular e com a nota do ENEM ingressou no curso de Gestão de Turismo, no IFSP – Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Educação. Após concluir a graduação, Amanda fez uma especialização em Gestão Cultural no Itaú. A ex-aluna do Cursinho Transformação é uma das organizadoras do Transarau, e destaca a importância das experiências que vivenciou nos encontros.

“O cursinho me permitiu olhar com generosidade para a minha identidade e para demais identidades e individualidades no geral. Fui muito acolhida e pude acolher, em uma grande rede de afeto que me trouxe confiança e coragem para buscar novas perspectivas”.
Amanda Paschoal, ex-aluna do Cursinho Transformação.
Assim como Amanda, Ika Eloah Carneiro também estudou no Cursinho e ingressou no ensino superior. A ex-aluna participou da iniciativa no ano de 2017 e acessou o curso de Ciências Sociais na UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos em 2018. Embora haja um trabalho incisivo de militantes e ativistas para garantir a entrada de pessoas trans no ensino superior, as políticas públicas de permanência ainda são escassas, por isso Ika não concluiu a graduação, que exigia dedicação integral às aulas, impedindo de conciliar trabalho, necessário para o sustento, e estudos. “Não concluí e nem vou, pois é impossível estudar e trabalhar em São Carlos fazendo Ciências Sociais, que é um curso integral. A bolsa que recebia não dava nem para o básico “, diz Carneiro, que atualmente trabalha com testes de softwares na área de T.I em São Paulo.
O Cursinho Transformação segue lutando para que pessoas T tenham seus lugares assegurados na sociedade, com educação por meio de metodologias que reconhecem e valorizam seus corpos.
“O Cursinho está, desde sua criação, questionando, experimentando e criando práticas de horizontalidade. Embora sempre estejamos em busca de respostas que solucionem nossas questões cotidianas, no que diz respeito às práticas pedagógicas e políticas, Educação Popular não se aplica a partir de uma receita metodológica, é uma questão de perspectiva, de filosofia, da forma como nos colocamos no mundo. E isso a gente percebeu com a própria prática, com o diálogo com outros educadores e educandes, com a partilha com outros espaços de educação, com estudo teórico, mas e sobretudo, com o olhar atento para o interior do Cursinho.”
Célia Amaral de Almeida – Coordenadora pedagógica do Cursinho Transformação
SERVIÇO
Cursinho Popular Transformação
Se você tem mais de 18 anos, é trans e gostaria de ser alune do cursinho, preencha o formulário.
Todas as informações sobre atividades e inscrições para participar do Cursinho Transformação são disponibilizadas pelas redes sociais.
Foto: Danilo Verpa