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Ação Educativa completa 29 anos de atuação na defesa dos direitos humanos e promoção de justiça social

Rumo aos 30 anos de história, a instituição resgata os principais marcos de incidência política, entre eles, a luta pela implementação da Lei 10.639

Em celebração aos 29 anos da Ação Educativa, e marcando o início da contagem regressiva rumo aos 30 anos de história, Ednéia Gonçalves, coordenadora executiva adjunta da organização, fala nesta entrevista sobre o papel da Ação Educativa na alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) pela Lei 10.639 de 2003, responsável pela obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afrobrasileira na rede de educação.

Se você pudesse contar a história da Ação Educativa, por meio da Lei 10.639, qual história você contaria?

Ednéia Gonçalves – A primeira coisa que precisaria ter na introdução dessa história é o lugar da 10.639 na luta por educação de qualidade, por enfrentamento ao racismo e as suas consequências na formação da população preta, e a Ação Educativa sempre dialogou com essas demandas. 

A Ação Educativa é uma organização que carrega, desde o início da sua história, a luta pela defesa da democracia e dos direitos humanos, e não tinha como não participar também como interlocutora do Movimento Negro, que é o grande protagonista da conquista da 10.639.

Desde o início do nosso trabalho, na Área da Educação, nós tivemos uma preocupação muito grande em construir educação de qualidade, entendendo qualidade como a possibilidade de você articular os conhecimentos sistematizados pela ciência, pelas áreas do conhecimento, com o que é construído nos territórios, pelos diferentes grupos, então, é essa articulação que produz uma educação de qualidade, com aprendizagem significativa para todo mundo. Todos os projetos que nós fomos desenvolvendo ao longo da nossa história de articulação com os movimentos sociais, de articulação com o Movimento Negro, de reconhecimento do direito a essa educação de qualidade, de uma forma ou de outra, dialoga de forma horizontal com isso. Nós já tínhamos um diálogo estabelecido com a Academia, a partir do Concurso Negro e Educação, nós tivemos uma participação grande por meio dos nossos interlocutores do Hip Hop, a Ação Educativa, também foi um grande espaço de divulgação da cultura hip hop.

Nós já tínhamos uma discussão muito grande no campo da formulação de políticas públicas que dessem direito realmente aos professores, às professoras, terem formação no campo da educação antirracista, quando começamos a pensar numa forma de construir uma metodologia participativa que desse conta da 10.639, estar presente nos territórios educativos, estar presente nas formações. Eu acho que esse foi o maior desafio que tivemos, construir uma autoavaliação que trouxesse todas as pessoas, todos os atores que estão envolvidos nos territórios, para a discussão dessa lei, como cotidiana, como parte dos desafios, tanto da comunidade escolar, quanto da gestão, a gente foi naturalmente se envolvendo, cada vez mais, criando forma de fazer uma formação de gestores, de fazer uma formação de professores, que desse conta de toda esse legado, de todo esse tempo que nós tivemos para aprimorar o que já acontecia, e o que nós criamos a partir do que já acontecia, a partir das proposições do Movimento Negro.

Hoje, quando pensamos na 10.639, e nós vemos nos territórios em que nós atuamos a forma como a metodologia dos indicadores de qualidade nas relações raciais é utilizado, vemos que cada um, no seu território, cada um na forma como a comunidade se organiza, também se apropriou de uma forma dessa metodologia. É uma metodologia que tem muito fôlego, é um projeto que dialoga com todos os outros, e essa história, a gente também pode encontrar nas discussões que nós fizemos internamente no enfrentamento ao racismo institucional. Existe uma cartilha, existe um material que foi produzido internamente para contar o quanto esse tema é caro, e ele é essencial para as organizações de direitos humanos. 

Desses projetos que você citou, inclusive o Concurso Negro e Educação, e outros projetos desenvolvidos ao longo da história da Ação Educativa, o que ficou, e quais foram os nossos aprendizados?

Ednéia Gonçalves – O que fica é, sobretudo, a certeza que o enfrentamento ao racismo é o grande desafio da democracia. Não tem como você começar qualquer outra discussão de base, nesse país, visando pensar na cidadania, pensando nos desafios econômicos, nos desafios sociais, que não passe pelo enfrentamento ao racismo, o racismo é o grande tema. E quando a gente intersecciona com as questões de gênero, com as questões sociais, com as questões de origem, o racismo está lá, ele está o tempo inteiro indicando para nós o quanto a história de violência, que é a história desse país, é uma história construída a partir de muita opressão, é uma história construída a partir de muitos desafios, de um grupo que foi penalizado por essa violência ao longo da história.

Precisamos pensar, que, da mesma forma, que a luta antirracista nos ensinou a trabalhar na cultura, ensinou a trabalhar a juventude, a educação, ela também nos ensinou que o racismo se reinventa, então, garantir políticas públicas, ações afirmativas, garantir o direito de você ter uma formação num processo central, mas uma formação escolar, uma formação acadêmica, você ter uma atuação profissional sem o trauma do racismo, ainda é um desafio para toda a sociedade brasileira, mas precisamos reafirmar que, esse desafio, ele precisa, sobretudo, que a educação assuma como parte integrante da essência da qualidade educacional, nós temos uma preocupação muito grande em dialogar com as redes.

Nós temos discutido, nos últimos anos, com a rede privada de ensino, a sua responsabilidade na construção da educação antirracista. Temos um desafio, que não é só um desafio da Ação Educativa, é um desafio do país, mas cada um tem uma responsabilidade muito grande e muito específica. Somos uma organização da sociedade civil, e a sociedade civil é parte integrante das soluções, da denúncia e do controle social. 

Você citou uma série de memórias que construiu a história da Ação Educativa. Hoje, como é possível identificar essas memórias no cotidiano da organização?

Ednéia Gonçalves – O mais evidente é você ver as caras pretas aqui dentro da Ação Educativa. Essas pessoas pretas que têm trabalhado aqui, elas não têm só colorido o ambiente, elas têm trazido conhecimento e experiência. A outra forma de você perceber o impacto dessas conclusões, no nosso dia a dia, são os materiais que nós publicamos. Hoje nós temos, como um compromisso, trazer as diferentes vozes que foram importantes para que pudéssemos construir um ideal de cidadania, realmente como interlocutoras, protagonistas. Então, o trabalho que nós desenvolvemos com a Câmara Periférica do Livro, é para trazer diferentes vozes. O trabalho que nós fazemos com Jovens Mulheres Negras, é para trazer essas vozes. O trabalho que nós fazemos na Educação, é para trazer essas vozes. O nosso prédio, esse predinho todo grafitado, comunica isso, as pessoas que aqui circulam, as diferentes presenças que estão nesse lugar. Falamos em diferentes presenças, porque é da diferença que sai o conhecimento que pode impactar o futuro, que impacta a qualidade do que fazemos. Isso constrói a qualidade da nossa voz e das interlocuções que estabelecemos. Não somos apenas uma organização que se coloca nesse campo como defensora, nos colocamos como produtora de conhecimento, e que reconhece que esse conhecimento precisa ter diferentes fontes.

Sobre sua trajetória, em 2018 você se tornou parte da Coordenação Executiva, como a primeira mulher negra a ocupar esse posto. O que esse marco representa para você do ponto de vista do momento institucional?

Ednéia Gonçalves – A primeira coisa é que eu sou preta o tempo inteiro, eu sou preta a vida inteira, os conhecimentos que eu levo para esse espaço institucional são os conhecimentos da trajetória de uma mulher preta que atua no campo da educação há mais de 40 anos, que tem na sua trajetória um ingrediente importantíssimo que foram os anos que eu trabalhei no Continente Africano. Essa experiência é institucionalmente importante, porque o tipo de questionamento, o tipo de desafio que parte da minha voz, é o desafio da população negra, é o desafio de quem tem uma trajetória parecida com a minha, ou com as mesmas matrizes que a minha.

Estar nesse espaço de Coordenação Executiva é justamente para mostrar que com a diferença nós podemos acessar outras formas de construir conhecimento, e a minha trajetória é parte disso. Não adianta buscarmos só na Academia referências para fazer transformação, para fazer mudança, a informação que eu trago vem de outros lugares, vem da periferia, vem de África, vem das minhas ancestralidades, e vem, sobretudo, do meu desejo, como ativista, de produzir mudança a partir da equidade.

Considerando os principais projetos da Ação Educativa nessa agenda, quais são os horizontes apontados a partir da atuação política institucional?

Ednéia Gonçalves – Olha, a gente tem enfrentado com muita garra um desafio, que é dialogar com as comunidades quilombolas, falar sobre infâncias negras, falar sobre gestão negra, e sobretudo, falar do lugar dos marcos legais da educação antirracista em prática na escola, produzindo conhecimento, formação e transformação.

Todos os nossos projetos, de uma forma ou de outra, dialogam com isso. Estamos lá no Maranhão trabalhando com comunidades quilombolas, trabalhando com formação de gestores, com infâncias negras. Nós temos aqui, em São Paulo, um espaço que é todo dedicado, que é esse prédio inteiro, à escuta, à produção de conhecimento e a expressão desse conhecimento frente aos diferentes desafios que nós temos nos nossos projetos. É fundamental trazer as vozes como protagonistas e escrever a nossa história a partir das periferias. A Câmara Periférica do Livro também tem muito a ver com isso, com trazer acervos diferentes, e a possibilidade de fazer a formação, não só leitora, mas escritora, dessas pessoas das periferias e das pessoas pretas.

Trabalhar com a 10.639, nos seus 20 anos, é também o desafio de enfrentar a realidade de que apenas 29%, das prefeituras, tem projetos, intencionalmente, antirracistas, é esse o dado que a pesquisa do Alana e do Geledés trouxe para nós, esse início de mês. Então, imagine, 29% apenas. 18% das prefeituras não tem nenhuma ação que dialogue com a 10.639.

Trabalhamos a autoavaliação, nós trabalhamos as escritas dessas pessoas, a produção de conhecimento da população negra, para dizer que existem formas, nos territórios, de colocar essa lei em movimento, e colocando em movimento, é possível não só fazer o mínimo da obrigação do Poder Público, que é realmente fazer com que a lei aconteça. Não é uma questão de escolha, é lei, é a LDB que foi alterada pela 10.639.

Temos a oportunidade de identificar quem está fazendo a diferença, a prefeitura que está construindo uma forma diferente de lidar com os desafios da lei, para que possamos comunicar com um público mais amplo, para outras redes, para outras pessoas interessadas, que essa lei precisa fazer sentido, e fazer sentido para a comunidade escolar, passa pela escuta, passa pela escuta ativa de todos os atores. 

O que isso significa para você, pessoalmente?

Ednéia Gonçalves – Um desafio que não tem fim, porque o que acontece, é: Eu sou uma mulher preta, os desafios de uma mulher preta estão colocados o tempo inteiro na minha vida. Só que eu tenho, também, o desafio da representação, isso quer dizer a possibilidade de mais mulheres se verem em espaço de gestão, e experimentar a gestão é uma coisa que nós fazemos há muito tempo. Normalmente, quando assumimos lideranças, a gente já vem com um pouco menos de emoção, mas muito mais capacitadas, porque a nossa casca é dura, nós temos a possibilidade de ter uma voz um pouco mais alta, sem assustar as pessoas. Estar nesse lugar quer dizer que esse corpo representa vozes que não é só a minha, são muitas vozes que eu represento nesse lugar e pessoalmente, isso me faz muito bem.

Recentemente, aconteceu na Ação Educativa o lançamento do livro “Escritas Pretas Sankofa – volume 2”, sobre narrativas de mulheres negras, com a sua escrita, da Kassandra e Analu. Teve um momento de bastante emoção, quando vocês falaram do Concurso Negro e Educação. No cotidiano do seu trabalho, olhando para a sua trajetória, o quê que te alimenta, o quê te emociona? Quais histórias te fazem pensar que valeu a pena?

Ednéia Gonçalves – Você citou um momento super importante, que é o lançamento de um livro escrito por mulheres negras. Nesse livro escrevi sobre a minha mãe. Eu estava pensando num nome, tinha que dar um título para o texto, queria falar da minha mãe, e não sabia como, então escrevi sobre trançar cabelo.

O título do texto é “Encantamento entre mãe e filha: trançar cabelo”, porque quando a minha mãe trançava o meu cabelo, na verdade, ela tecia mapas, possibilidades de fuga do racismo, para que eu pudesse ter autonomia, para que eu pudesse ser uma pessoa que faz escolhas. Era essa a sensação que eu tinha do toque da minha mãe no meu cabelo, falando como se eu fosse filha única no meio de seis. Essas histórias de você pensar, que esses momentos de cumplicidade entre mãe e filha, lá na periferia da Zona Leste, em São Mateus, de pensar que a minha mãe tinha sonhos para a filha dela, e que os meus sonhos eram menores até do que o dela, é o que faz sentido hoje.

O meu pai era restaurador de livros, mas antes de ser restaurador de livros, ele era coveiro de cemitério. Como é que uma pessoa faz essa transição, de coveiro de cemitério e passa para ser restaurador de livros, e enche a sua casa de livros, e sai com filhas leitoras e escritoras? Essa é a grande trama que eu fico tentando resolver na minha vida, porque aqueles dois, sim, se reinventaram. Aqueles dois, sim, traçaram uma história que fez sentido, não só para a minha vida, e por isso eu aguento o tranco de lidar com a gestão, porque a gestão que eles fizeram da história familiar, da história ancestral, para construir autoestima, autocuidado, energia para poder cruzar um oceano por dia, que é isso que eu faço, cada vez que eu saio da minha casa para trabalhar, é que para mim é o trabalho mais interessante, é o trabalho mais forte, é o trabalho que faz sentido.

Reconhecer que o meu passo vem de longe, e que o passo dos meus pais vem de mais longe ainda, é que faz com que eu possa ser interlocutora, para que outras mulheres pretas, para que outras meninas pretas saibam que quando elas estão lá trançando os seus cabelos, elas estão trançando caminhos. Essa é a forma de lidar com o aprendizado, não tem muita coisa além da crença de que nós somos muito fortes, e essa força é testada todos os dias, porque se eu sair daqui e atravessar a rua, eu posso sofrer racismo. Então, não é o meu passado que eu enfrento, o meu passado é aonde eu descanso, o meu presente é que faz com que todos os dias eu cruze oceanos. É isso. E cada vez esse oceano fica mais bravio, mas eu atravesso, porque eu sei o que tem do outro lado, um monte de meninas, um monte de mulheres pretas produzindo muito, construindo conhecimento, é isso que me emociona. É isso, poder ver a história da minha mãe trançadeira na vida das meninas, das mulheres, com quem eu, diariamente, troco, construo conhecimento.

Podemos afirmar que a sua vida agora é resultado do sonho da sua mãe, ou é maior que o seu sonho?

Ednéia Gonçalves – A minha vida é o sonho da minha mãe, e a minha mãe é o meu sonho.

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