“A gente se propôs a trabalhar com a liberdade dentro da prisão”, define Fernanda Nascimento, coordenadora técnica do Projeto Arte na Casa da área de cultura da Ação Educativa, até julho de 2021. Fernanda é uma das responsáveis pela segunda edição da publicação Arte na Medida, que compila materiais sobre as metodologias desenvolvidas por arte-educadoras e arte-educadores que atuaram em espaços de privação de liberdade contemplados pelo projeto. A publicação está disponível para download no site da Ação Educativa.
O projeto Arte na Casa foi realizado por 13 anos pela Ação Educativa, convênio público com a Fundação Casa que também contava com outras OSC’s parceiras (Cenpec, Cedap e Gada) para o desenvolvimento de oficinas artística-culturais dentro dos centros de atendimento de medidas socioeducativas privativas de liberdade do estado de São Paulo, e no momento aguarda o resultado do novo edital para os próximos meses.
“A atuação da Ação Educativa se concentrou especialmente nas unidades do complexo da Vila Maria e de centros da Fundação Casa localizados nas zonas Leste e Norte da cidade. Nos primeiros anos foram atendidos centros no município de Ferraz de Vasconcelos e Itaquaquecetuba que, assim como aqueles na Zona Leste, foram criados com a proposta de descentralização da instituição”, explica Fernanda. Os centros eram atendidos por arte-educadores(as) contratados(as) para realizar oficinas em modalidades como teatro, circo, música, dança, literatura, rap entre outras, que estão documentadas na nova edição do Arte na Medida. O material tem a preocupação de atender quem trabalha com adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas, mas ele pode ser aproveitado em quaisquer outros contextos.
Confira o relato de Fernanda sobre a experiência no projeto Arte na Casa e na construção das publicações que registram os aprendizados dessa iniciativa:
Como foram elaboradas as publicações Arte na Medida?
Fernanda: A primeira publicação surgiu em 2012, ainda na gestão do antigo coordenador técnico Rodrigo Medeiros. O Arte na Medida foi o resultado da troca com os saberes dos(as) adolescentes e jovens nas salas de aula. Os primeiros anos de Projeto possibilitaram a construção coletiva de uma proposta pedagógica que equilibrava o que era ideal e o que era possível ser realizado dentro dos centros.
A Fundação Casa não exigia planos de aula para as atividades, e no início achávamos importante dar espaço para a experimentação, mas queríamos registrar os acúmulos de três anos de projeto. Resolvemos reunir educadores(as) de cada modalidade para discutirmos quais atividades vinham dando certo e produzir um material de referência. Nessa época muitos educadores(as) que estavam com a gente eram artistas que aprenderam a ser arte-educadores(as) na prática, dando aulas, já que não há muitos materiais de orientação, mesmo fora do contexto das medidas socioeducativas. Com o resultado, produzimos a primeira edição do Arte na Medida, que trazia insumos como possibilidades de aula, a partir das quais cada educador(a) pode escolher as partes mais interessantes e compor a sua própria oficina.
Com o tempo, houve uma mudança no perfil de profissionais que participavam do projeto. As primeiras equipes eram compostas por uma maioria de educadores homens e havia um caráter mais informal, alguns deles tinham aprendido suas habilidades artísticas nas ruas. Com o tempo, começamos a diversificar a equipe para termos mais mulheres, e também começaram a chegar pessoas com formação universitária, mesmo que não fosse diretamente relacionada às artes, nem uma exigência de contratação.
Em 2017, a 1ª Semana de Educação Popular, Cultura e Direitos Humanos abordou temas centrais da Ação Educativa. Propusemos uma atividade em que arte-educadores(as) contassem suas experiências com as oficinas para adolescentes e jovens que cumpriam medidas socioeducativas, e tivemos uma boa participação. A proposta gerou um material escrito muito rico, que serviu de base para o livro “Na Linha Tênue: experiências de arte educação em privação de liberdade”, que é mais focado em relatos de educadores(as).
Para o Arte na Medida 2, a proposta não é mais uma compilação de propostas de oficinas, mas uma sistematização dos planos de aula elaborados nos ciclos de oficinas e que documenta o conhecimento desenvolvido durante os anos de formação promovidos pelo projeto. A gente entende que o planejamento de aula precisa ser flexível, mas é necessário ter algum material que oriente quem vai realizar as oficinas de arte-educação, ainda mais considerando a complexidade dos espaços de privação de liberdade.
A especificidade da publicação é importante porque os arte-educadores precisam se aproximar do público com quem estão atuando. São adolescentes e jovens, não adultos, e que muitas vezes participam das atividades por estarem presos(as) e não espontaneamente. Então, são necessárias formações sobre educação, questões raciais e de gênero, adolescência e juventude, para fortalecer essa relação.
Como a arte-educação se relaciona com as medidas socioeducativas?
Fernanda: A gente enfrentou uma série de dilemas na idealização do projeto, e o primeiro foi com a concepção de arte com a qual a gente trabalharia. Não que os adolescentes não pudessem ter acesso a todo tipo de criatividade que a humanidade produziu, mas fizemos uma escolha por uma arte emancipadora, que não é elitizada, que conversasse com os(as) adolescentes e jovens em privação de liberdade.
Esse pensamento fez a gente levar pra dentro da Fundação Casa músicos e expressões artísticas como o teatro negro e artistas periféricos(as) que talvez as pessoas lá dentro nunca fossem ter acesso. Isso porque são adolescentes que às vezes até conseguem dinheiro para roupas caras, mas nunca tiveram direito à cidade. Alguns(as) nunca foram à praia, outros mal saíam do próprio bairro.
A gente também tinha dificuldades com aprovação das modalidades pelas unidades, as oficinas de literatura não eram aceitas por que acreditavam que os internos não gostavam de ler, sendo que essa era justamente a finalidade das oficinas. E depois de aprovadas ainda tínhamos problemas, como as oficinas de RAP, que a gente era chamada na unidade até para explicar um palavrão nas letras, ouvido por um funcionário que não entendia o contexto.
As oficinas são um ambiente onde acontece muita troca e aprendizado mesmo pra gente, e é preciso ter consciência de que, se a gente vai dar oficinas de teatro, montar uma peça no final é uma consequência, poderia acontecer ou não. Ninguém ali vai ser obrigado a fazer uma apresentação, precisa ser vontade deles. Quem é educador precisa ter em mente que vai para as unidades para fazer parte de um processo educativo, e que uma aula de rap ou de dança não vai ‘salvar a vida’ ninguém, e nem é essa a proposta, o que nos leva lá é um processo de ensino e aprendizagem, de experimentação, fruição e garantia de direitos.