Em abril deste ano, a Tropa de Choque retirou, de maneira violenta, estudantes secundaristas que ocupavam o Centro Paula Souza logo após o escândalo de desvios de verbas da merenda escolar, revelado pela Operação Alba Branca. A ação do Ministério Público desmantelou um esquema de superfaturamento nas merendas escolares do Estado de São Paulo, logo após denúncias revelarem intermitência na entrega de alimentos – estas, quando aconteciam, eram merendas secas: bolachas, sucos e bolos industrializados. Após duas semanas de ocupação, a Tropa de Choque foi chamada para fazer a reintegração de posse do prédio do Centro Paula Souza, no centro da capital paulista, operação que resultou em tumulto e feriu estudantes.
A tática das ocupações, no entanto, não é exatamente nova no meio dos secundaristas. A partir de novembro do ano passado, estudantes de mais de 200 escolas do Estado de São Paulo se mobilizaram contra a chamada “reorganização escolar”, proposta pela Secretaria Estadual de Educação. Na proposta, 94 escolas seriam fechadas a fim de oferecer o ciclo único de ensino, ou seja, apenas ensino fundamental ou ensino médio. Com a mudança, estudantes poderiam ser transferidos para escolas até 1,5 km de distância de sua moradia, além de estar previsto o remanejamento de vagas e de professores, com o propósito de melhorar o desempenho escolar das unidades.
A proposta foi mal recebida pela comunidade escolar e deu origem ao movimento de ocupações secundaristas, iniciado em 9 de novembro de 2015 na Escola Estadual CEFAM Diadema. A partir dali, as ocupações se espalharam pelo Estado e duraram até dezembro, quando melhores condições de ensino passaram a ser negociadas entre os secundaristas e o poder público. A mobilização barrou o programa de reorganização escolar até o começo de 2017, quando deverá ser votada, novamente, na Assembleia Legislativa. Além disso, muitas escolas ocupadas foram cercadas pela Polícia Militar e estudantes foram atingidos por balas de borracha, gás lacrimogêneo e cacetadas durante manifestações públicas em dezembro. As ações policiais foram registradas por pais e alunos em vídeo e denunciadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos em abril (veja o vídeo denúncia aqui).
Diante das mobilizações estudantis, o professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, questiona “mas onde, afinal, estava a gestão democrática das escolas ocupadas?”, durante o debate organizado pela campanha Fome de Educação na Ação Educativa, no último dia 22 de junho.
O professor defende que o projeto de reorganização escolar foi reiniciado em 2014, dando continuidade a um plano neoliberal de ensino que busca privatizar o ensino médio no Estado e que, por meio das propostas de fechamento de escolas e planos de demissão de professores, esta política foi implementada em 2015 com sucesso, do ponto de vista de seus proponentes e a partir daí, tornou-se parte de uma política de gestão do governo estadual. Para Salomão, “o que a luta estudantil fez naquele momento foi frear essa reorganização que estava em curso”. O pesquisador também afirmou que o principal inimigo das reformas educacionais do governo estadual é o movimento estudantil, com sua capacidade de articulação e mobilização diferentes dos sindicatos de professores ou outras entidades do gênero.
Não apenas professores doutores estiveram presentes. Pais de alunos e estudantes secundaristas também participaram do debate naquela noite. Kézia Alves é mãe de dois estudantes da rede pública de ensino e também presidente do Conselho de Representantes dos Conselhos de Escola (CRECE) de São Paulo. Após perseguições políticas e retaliações durante o governo Serra, o conselho se mantém vivo, procurando interferir na qualidade das escolas e garantir a participação de pais em reuniões pedagógicas regulares para definir reformas prediais, programa de ensino e mudanças no projeto político-pedagógico.
Kézia destaca que, após mobilização de pais e mestres, as propostas de participação popular tornaram-se leis municipais em 2015. “Lutamos para deixar claro que não era uma proposta de plano de governo, mas uma proposição de política de estado. Só se entende participação popular participando”, afirma. Kézia defende que existem problemas estruturais na cultura brasileira, o que dificulta a gestão democrática das escolas. “Por mais que os gestores tentem, a democracia é muito difícil, é um processo de aprendizado e muitas vezes, a gente não está disposto ao trabalho que esse processo vai nos dar”.
As falas de Kézia convergem com as críticas feitas pelo movimento secundarista ao governo estadual. Para ambos, a decisão de “dar espaço” para manifestação de pais e alunos em conselhos escolares e em outros espaços formais de participação é uma atitude política dos governos que pode facilmente parecer democrática sem verdadeiramente ser. Interpretando de maneira caricatural alguns gestores públicos, Kézia ironiza: “já fomos muito democráticos em dar espaço para que vocês falassem o que queriam, mas querer mudar as coisas…. ah, aí já é demais!”.
O deputado estadual Carlos Neder também pontuou aspectos legislativos da participação popular em organismos públicos. Segundo ele, a Constituição Federal de 1988 possibilitou que três tipos de democracia nas instituições públicas brasileiras: democracia direta, participativa e representativa. Para Neder, a gestão democrática das escolas se encaixam na lógica de democratização do Estado por meio da qual a participação popular se dá durante a tomada de decisões nas escolas.
Alan Soares, um dos secundaristas ocupantes da escola E.E.Fernão Dias, trouxe relatos de violência e repressão policial no Fernão e em escolas da periferia, que não receberam tanta atenção da mídia. Segundo o estudante, o debate político não chega às escolas públicas e, quando chega, está cerceado pela presença física e pelo posicionamento ideológico dos diretores e coordenadores pedagógicos. A situação só mudou a partir da unificação dos comandos de ocupações secundaristas, quando houve maior troca de experiências entre os estudantes e maior participação coletiva das decisões a serem tomadas com relação à reorganização escolar proposta pela Secretaria de Educação.
Salomão elencou problemas que rondam o ensino público no Brasil, que vão além da falta de merenda escolar nas escolas públicas paulistas. Entre eles estão o impacto negativo do ajuste fiscal no orçamento da educação; a agenda de privatização do ensino, evidenciada pela ausência de debate público sobre a reorganização escolar e pela transferência da gestão escolar a organizações sociais; a militarização das escolas, especialmente em estados como Goiás, Sergipe e Piauí; e, por fim, a implementação do projeto Escola Sem Partido.
Os estudantes concordaram que a situação não está fácil. Mesmo após intensa mobilização estudantil entre novembro passado e abril deste ano, os secundaristas que permanecem na rede de ensino têm sofrido perseguições de professores, diretores e estudantes descontentes com a reposição de aulas do período da ocupação. Também porque, apesar da luta secundarista, muitos aspectos negativos do ensino público estadual permaneceram iguais. Allan também argumentou que a escola onde ele e outros companheiros estudam não debate em profundidade problemas sociais como guerra às drogas, homofobia, bullying e machismo. “Estudamos e discutimos todas essas coisas durante as ocupações, esses debates não acontecem nas escolas!”, afirmou.
Para que estes e outros assuntos de interesse social e pedagógico possam ser debatidos nas escolas paulistas, é preciso que, entre outras questões, a lei de gestão democrática do ensino seja cumprida. Aprovada como emenda à Constituição do Estado, proposta pelo deputado Carlos Neder, a gestão democrática do ensino está presente no Plano Nacional de Educação e na própria Constituição Federal, a fim de garantir que a escola pública forme cidadãos conscientes e críticos, capazes de participar ativamente da sociedade.
Apesar de ser lei, nem sempre este aspecto é respeitado por gestores públicos de educação, como destaca Kézia: “Não adianta chamar a comunidade para dentro da escola e não dar condições para que a comunidade permaneça participando desse espaço. É diferente fazer parte de um grupo e tomar parte dele. Quando estamos envolvidos com a escola, vamos procurar melhorar esse espaço”.
O debate “Mobilizações Estudantis e Democracia” faz parte da campanha Fome de Educação, realizada pela Ação Educativa em defesa de um educação pública laica e de qualidade. A campanha surgiu como resposta à repressão policial à mobilização estudantil do começo do ano, a fim de difundir os princípios de gestão democrática do ensino nas escolas públicas paulistas. Para saber como foi o debate e todas as nuances das vivências estudantis, assista o debate completo.