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Concentração de tarefas e má distribuição de responsabilidades atrapalha a participação de pais e estudantes nas escolas públicas, diz professor da USP

Por Keytyane Medeiros
Gestão democrática do ensino público está prevista na Constituição Federal, mas o dia a dia das escolas demonstra que colocar este conceito em prática é mais difícil do que parece

Logo no começo de 2016, estudantes do Centro Paula Souza e secundaristas ocuparam a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) exigindo a instalação de uma CPI da merenda escolar, após denúncias de desvio de verbas. Por trás de reivindicações tão legítimas como alimentação escolar e melhores condições de infraestrutura, os estudantes trazem à tona um problema inerente à educação pública no Brasil: falta transparência, diálogo e representação política, o que pode ser traduzido simplesmente como gestão democrática do ensino. Há uma ausência de democracia nas salas de aula e nos conselhos de educação, mas sobram dúvidas sobre o ambiente nebuloso em que vivem os gestores escolares. Por quê estão ali e como chegaram a esse cargo? Como tomam decisões sobre toda a escola, incluindo reformas prediais e currículo pedagógico antes de consultar os principais interessados: pais, estudantes e professores?

Divulgação USP

Para responder isso, o professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em políticas educacionais, Rubens Barbosa de Camargo, bateu um papo com a equipe da campanha Fome de Educação e foi taxativo: provas como o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de SP (SARESP) e a Prova Brasil não são democráticas e atrapalham a vida acadêmica da escola.

Rubens, que foi secretário de Educação nas cidades de São Carlos e Suzano, defende que a verdadeira mudança nas escolas passa por boa vontade dos diretores em politizar os espaços de debate existentes, pela descentralização de funções e maior envolvimento dos estudantes no ambiente escolar. “Se o estudante for o avaliador da escola, ele pode indicar quais os professores que não ensinam bem, os problemas que a escola enfrenta, o que poderia ser feito para melhor e assim por diante. Se você coloca as pessoas para discutir nessa dimensão, temos um instrumento de avaliação que vai ao encontro da gestão democrática”, afirma.

 

Fome de Educação: Qual é a importância da gestão democrática nas escolas?

Rubens: A ideia de gestão democrática implica não só em um procedimento a se realizar nas escolas no momento em que os jovens, crianças e adolescentes estão vivenciando o espaço escolar em suas múltiplas atividades, mas também serve para auxiliar na formação para a cidadania de forma mais ampla, a ser vivenciada em espaços fora da escola. Então, quando eles aprendem a participar do que vai acontecer dentro da escola, é possível levar essa experiência para outras dimensões da vida social dessas pessoas, de uma forma que elas também possam delineá-las segundo aquilo que se julga coletivo e democraticamente realizável para atender o máximo de pessoas possíveis. O sentido da gestão democrática é a formação para a participação, entendendo que as pessoas são sujeitos de ação, que podem tomar decisões sobre os rumos que elas querem dar para os espaços que elas vivenciam. Esse é o sentido da gestão democrática, que se contrapõe a um sentido ainda muito presente nas escolas em que as decisões sobre o que acontece nesses espaços são tomadas por um número muito reduzido de pessoas, seja a direção ou coordenação, de tal forma que muitas vezes ninguém sabe direito quem tomou a decisão, mas todos têm que colocá-la em prática.

Por outro lado, a ideia de gestão democrática tenta minimamente modificar essa visão verticalizada das escolas e ter uma prática mais horizontalizada daquilo que se tem dentro das escolas por quem vive dentro. Quando falo em horizontalidade, falo de estudantes, professores, pais, funcionários e todas as pessoas que, de alguma maneira, tem sua vida também determinada pela escola. Muitas vezes as escolas são entendidas como se fossem posse de alguém. É muito comum ouvir, em especial de gestores, diretores e gerentes expressões como “na minha escola isso não acontece”, como se a escola fosse deles! E a ideia de uma gestão democrática é para, de certa maneira, dividir esse poder entre as pessoas que de fato fazem parte desse espaço social.

FE.:. Como a falta de gestão democrática e de espaços de discussão com a comunidade pode ter influenciado as ocupações secundaristas no ano passado e neste ano?

R.: No caso da rede estadual, acredito que em 20 anos de governo do PSDB não foi feita nenhuma medida para valorizar esses espaços de gestão democrática. Nesse nível de administração é um pouco mais complexo porque, além de ser concursado para o cargo, o diretor da escola também é o presidente nato do Conselho de Escola e do Conselho Deliberativo da APM [Associação de Pais e Mestres]. Então, do ponto de vista legal, ele concentra todas as incumbências que o sistema determina para as escolas. Isso faz com que se sinta acuado e com pouca possibilidade de delegação para as tarefas que lhe são destinadas. Então ele acaba concentrando o poder de decisão nas suas mãos o tempo todo, porque é o responsável legal. Com isso, os diretores manobram esses espaços de acordo com aquilo que acham que é melhor para a escola. Não necessariamente agem de má fé, são raríssimos os casos em que há má fé, mas os diretores agem de maneira a não se verem indiciados em processos que eles não querem ter que responder. Ele manobra para ter o mínimo de problema possível, então o diretor mesmo burocratiza, não propicia o processo de formação dos conselheiros, não politiza a discussão, e assim por diante.

F.E.: Como os Conselhos de Escola de São Paulo funcionam? Eles são estruturas suficientes para obter mais horizontalidade?

R.: A rigor, o Conselho de Escola seria o mecanismo que propiciaria essa vivência mais horizontal, na medida que tem representação de alunos, pais, funcionários, direção e de todos os segmentos que fazem parte da escola. Esse é um espaço em que essas decisões poderiam ocorrer, seja na definição de objetivos mais imediatos ou na construção do projeto político-pedagógico da escola, por exemplo. Mas, muitas vezes, por conta de um processo de formalização e burocratização que se teve nos últimos anos, em especial pela falta de politização do próprio Conselho de Escola, eles se tornaram espaços com pouca prática política, em que de fato essa dimensão democrática deixou de ocorrer. Acredito que diante dessas manifestações estudantis estaduais e também com as eleições municipais chegando, recolocar os conselhos de escola em pauta é uma necessidade urgente, assim como pensar estratégias para revitalizar estes espaços, bem como os outros conselhos institucionais ligados à educação, para que eles ganhem mais relevância política.

F.E:. Então como enfrentar esse esvaziamento dos Conselhos de Escola?

R.: Percebendo que essa gestão democrática é uma vantagem para a direção da escola, porque na medida em que a direção estiver junto com as pessoas que lá trabalham, que lá estudam ou deixam os seus filhos, a direção ganha força junto às secretarias e gabinetes para exigir as melhorias para a comunidade. Uma outra forma é perceber que participação também se ensina, assim como a gente pensa em processos de formação de professores, que  passem por atividades extras como cursos, palestras, peças de teatros etc., quando pensamos em formação de conselheiros, também passamos por esse tipo de capacitação, por situações-problema, com o objetivo de auxiliar na participação da comunidade nos processos decisórios nas escolas.

F.E.: Alguns especialistas defendem que a gestão democrática das escolas deve fazer parte da jornada de trabalho do professor. Como você vê essa questão?

R.: Aí mora uma polêmica: veja que o pai e o aluno não têm a jornada de trabalho para participar desses mecanismos de participação na escola, eles vêm porque acham importante. Acho que a melhor forma de tentar fazer um processo formativo com docentes e funcionários é verificar essa participação como um processo amplo de formação para a cidadania. Estou dizendo isso porque, na medida que você coloca isso na jornada de trabalho do professor, mas faz reuniões que não contemplam a presença dos pais, não é exatamente um processo de gestão democrática.

Dentro da jornada dos docentes, você poderia estabelecer uma parte para as atividades desses mecanismos de participação coletiva, para além dos projetos com os alunos na sala de aula. Mas não sei se entraria ou não na carreira do docente, não sei se seria mais adequado, porque isso ajuda na formalização desses espaços. O professor participa porque vai ganhar pontos na carreira, e não porque acha que é importante participar. Por outro lado, deve estar na jornada de trabalho um tempo para a possibilidade desse tipo de atuação. A própria lei do piso nacional dos profissionais do magistério prevê que  ⅔  da carga horária seja gasta com aluno em sala de aula e ⅓ para atividades fora, seja em atendimento da comunidade, correção de provas e, acredito que caberia, a presença em mecanismos de participação coletiva nas escolas.

F.E.: Pensando ainda em gestão democrática, seria possível implementar esses mecanismos nas universidades públicas?

R.: É pelo que brigamos na USP, mas ela é de antes da Constituição de 1988. Estou falando da Universidade de São Paulo, mas essa é uma realidade das universidades públicas brasileiras. E falo das públicas porque foi uma vitória para o setor privado que a Constituição Federal tornasse a gestão democrática uma obrigação apenas do ensino público, porque nem nas escolas e nem nas universidades privadas existe gestão democrática do ensino. Eles foram vitoriosos nesse sentido. Nas poucas instituições públicas em que há alguns mecanismos de gestão democrática, nós encontramos coisas como Conselhos de Departamento, Conselhos Universitários, Conselhos de Curso, que são anteriores à Constituição. Isso acontece porque tanto no ensino superior quanto no ensino básico, existe uma profunda tradição antidemocrática que reflete o que acontece no país. Por isso brigamos por Estatuinte, com mais presença de estudantes, professores doutores e funcionários. O Conselho Universitário da USP é pré-LDB (Lei de Diretrizes e Bases), os professores têm muito mais representação do que as outras categorias, em especial os professores titulares, porque os funcionários e estudantes não chegam a ter nem 30% das cadeiras.

F.E.: Com relação ao Plano Nacional de Educação, há pontos pouco claros com relação ao investimento no Custo Aluno-Qualidade, que é uma das metas do PNE. De onde esses recursos poderiam vir?

R.: Não é que não está claro de onde virão os recursos, essa é uma outra leitura de valores, uma outra regra de como são estabelecidos os valores para a educação do aluno, que é diferente do Fundeb, por exemplo. No Fundeb (Fundo Nacional de Educação Básica), primeiro se constitui uma cesta [de recursos]  e depois se reparte essa cesta pela quantidade de alunos. O Custo Aluno-Qualidade é o contrário: primeiro há um levantamento do que seria necessário para ter uma educação de qualidade, soma-se tudo isso e depois divide o total pelo número de alunos. São conceitos e valores diferentes. Por outro lado, o Custo Aluno-Qualidade geralmente é maior do que os valores indicados pelo Fundeb. A ideia é que os recursos têm que vir de modo a ampliar os gastos do Estado com educação, essa é a questão: o Estado tem que colocar mais recursos. Num determinado momento, se acreditou que os royalties do pré-sal seriam suficientes para investir em educação, e hoje já se sabe que esses recursos não são tão grandes assim. A ideia fundamental para a ampliação dos investimentos é aumentar a receita de impostos, estabelecendo uma política progressiva de cobrança de tributos e combatendo a sonegação fiscal. De tal forma, que a somatória dessas coisas ampliasse os recursos disponíveis para a educação.

F.E.: Qual a importância da regulamentação do Sistema Nacional de Educação?

R.: O Sistema Nacional de Educação tem como pressuposto dar um tratamento mais homogêneo da educação como um todo no Brasil. Do ponto de vista formal, cada ente federado tem uma certa independência legislativa, e aqui no Brasil tanto municípios quanto estados são entes federados. A rigor existe a possibilidade de ter mais de cinco mil sistemas de ensino no país. A ideia de um Sistema Nacional de Educação articulado seria estabelecer alguns parâmetros para um atendimento mais homogêneo, seja na forma de conduzir o funcionamento da educação nacional (básica ou superior), formas de financiamento, piso salarial de professores, entre outros. O sistema está sendo construído aos poucos e não será de cima para baixo. O Sistema Nacional de Ensino está sendo construído de acordo com a capacidade que os movimentos sociais e os diferentes governos têm para construir essa base homogênea. Porque, na verdade, temos um sistema muito desigual no Brasil, seja num mesmo estado onde existem tipos de atendimento muito diferentes entre si, seja por conta da capacidade econômica e do número da população atendida ou seja por conta do Fundeb. O Fundeb começou a dar um pouco de contorno a essa condição, mas  ainda não ataca, a não ser de maneira muito discreta, as discrepâncias regionais. Isso significa que as condições objetivas para o atendimento de qualidade no Brasil é marcado pelas diferenças regionais. Eu acho que o Plano Nacional de Educação de 2014 dá uma ideia de estrutura mais geral para que se consiga superar essas diferenças, estabelecendo metas e estratégias nesse sentido.

F.E.: Então qual é a importância dos mecanismos de avaliação institucional e dos indicadores de qualidade para analisar o funcionamento das escolas no que diz respeito à gestão democrática?

R.: Muitas vezes a ideia de avaliação institucional por meio de indicadores de qualidade é interpretada como uma maneira de medir resultados ou como a melhor expressão para avaliar o que ocorre dentro da escola. Mas, muitas vezes, isso vem de fora para dentro, como uma espécie de política de avaliação de larga escola, que inclusive muda o próprio jeito da escola trabalhar. Provas como Prova Brasil, Prova São Paulo, SARESP vão no sentido contrário da gestão democrática e orientam o conteúdo para português, matemática e só. Então elas mudam inclusive a política curricular e a abrangência dos conteúdos dados na escola, empobrecendo aquilo que acontece ou poderia acontecer nesse espaço.

Numa perspectiva de gestão democrática, a avaliação poderia acontecer sem relacionar o desempenho do aluno com as provas centralizadas e de larga escala. Poderia haver um envolvimento maior da comunidade nesses mecanismos de avaliação, dos alunos no sentido deles serem os avaliadores das dimensões que a escola oferece. Se o estudante for o avaliador da escola, ele pode indicar quais os professores que não ensinam bem, os problemas que escola enfrenta, o que poderia ser feito para melhorar e assim por diante. Se você coloca as pessoas para discutir nessa dimensão, temos um instrumento de avaliação que vai ao encontro da gestão democrática.

Veja o infográfico abaixo:

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