Com alterações que tratam da obrigatoriedade escolar, padrões nacionais de funcionamento na educação infantil, bem como trazem orientações para o combate a desigualdades, a Lei nº 12.796 modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) à Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009, que torna obrigatória a oferta gratuita de educação básica a partir dos 4 anos de idade.
O advogado da Ação Educativa e coordenador do Programa Ação na Justiça, Salomão Ximenes, elenca algumas das novidades trazidas pelo novo documento e provoca uma reflexão sobre suas principais consequências. Confira.
Quais as consequências da mudança provocada pela Lei nº 12.796 para os municípios?
Salomão Ximenes: A Lei n° 12.796/2013 realiza uma alteração expressiva da LDB. Em relação ao período de obrigatoriedade escolar, a Lei basicamente faz um ajuste de redação da LDB em relação à Emenda Constitucional n° 59, de 2009, que havia ampliado a obrigatoriedade para a faixa etária de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos, estabelecendo o ano de 2016 como prazo final para a universalização. Para os Municípios, cuja atribuição constitucional prioritária é oferecer oportunidades educacionais de qualidade nas etapas infantil e fundamental, esse novo paradigma legal exige a adoção de medidas para seguir ampliando a oferta de pré-escola e ensino fundamental, alcançando o atendimento de toda a população a partir dos 4 (quatro) anos. Mas o detalhamento presente na Lei n° 12.796/2013 e a legislação educacional em geral também determinam as seguintes medidas aos Municípios: (i) realização de recenseamento anual da população excluída da rede educacional, como forma de mobilizar essa população, cobrar a matrícula daquelas em idade obrigatória e planejar o atendimento nas diferentes áreas do território. Hoje o recenseamento é feito com quem está na escola (Censo Escolar do INEP/MEC), por isso a legislação visa suprir tal deficiência, determinando o uso da metodologia de recenseamento como forma de alcançar e manter a universalização, no caso da educação obrigatória, e de ampliar a oferta, no caso da educação infantil não obrigatória, que é a creche; (ii) articulada a esse desafio, há também a necessidade de valorizar e oferecer condições técnicas e materiais de trabalho à rede de proteção aos direitos da criança, principalmente aos Conselhos Tutelares, que serão os órgãos responsáveis por exigir dos pais e do poder público o atendimento de todos; (iii) por fim, destaco da Lei n° 12.796/2013 o estabelecimento de padrões básicos nacionais de funcionamento das instituições de educação infantil, como mínimo de horas de trabalho pedagógico e dias letivos, por exemplo. São desafios importantes nesse campo, explicitados na referida Lei: a oferta de educação inclusiva e atendimento educacional especializado já no início da educação infantil e a consideração da diversidade étnico-racial também em toda a educação básica. Esses são aspectos qualitativos essenciais, pois não é possível conceber um sistema inclusivo e que reconheça e respeite às diversidades mantendo-se frágil o ponto de entrada das crianças no sistema, que também é geralmente a primeira experiência significativa de atuação das crianças no espaço público, neste caso, a creche ou a pré-escola. Pontos que merecem crítica na referida Lei são o estabelecimento de uma frequência mínima, de 60%, para a educação infantil, o que entendo ser equívoco de enfoque (ou seja, o adequado é enfrentar as causas da baixa frequência) e também técnico-jurídico, já que não é admitido o desligamento das crianças matriculadas na pré-escola, etapa obrigatória, e muito menos qualquer punição acadêmica, já que pela própria LDB não há possibilidade de retenção na educação infantil.
O que eles precisarão fazer para se adequar? Construção de escolas, reestruturação, contratação de professores?
Salomão Ximenes: Primeiro, é importante destacar que a Emenda Constitucional n° 59, de 2009, que ampliou a obrigatoriedade escolar, é a mesma que incluiu dois conceitos-chave na Constituição: a criação do Sistema Nacional de Educação e o estabelecimento de metas de ampliação do investimento educacional em relação ao PIB. Com isso, implicitamente, o poder legislativo constituinte reconhece duas lacunas institucionais da maior relevância para que se possa, como almejamos, alcançar a universalização das oportunidades educacionais com garantia de padrão de qualidade para todos, são elas: (i) é necessário criar um sistema que não se limite a estabelecer competências excludentes ou, no máximo, redistribua recursos dentro dos estados com um relativamente pequeno apoio do governo federal. O sistema nacional tem que adotar como princípio básico a igualdade de condições de oferta, independente do local de moradia do estudante este deve ter atendidas as necessidades básicas de aprendizagem, como determinam todos os parâmetros nacionais e internacionais. O Custo-Aluno-Qualidade, na forma como vem sendo defendido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, é a melhor formulação que temos nesse sentido; (ii) a segunda lacuna é que, com a Emenda, fica reconhecida a insuficiência de recursos hoje vinculados à educação, por exemplo, os 25% de receita de impostos e transferências no âmbito dos municípios. Esse é o quadro geral do debate sobre política educacional e caso tais exigências não sejam atendidas ocorrerá um efeito perverso, que não é novo no nosso contexto: vamos “incluir” mais crianças nas escolas com os mesmo recursos disponíveis, o que significa maior precarização, rebaixamento salarial dos professores e condições desumanas para a aprendizagem.
O essencial, do ponto de vista dos Municípios é, inicialmente, estabelecer, com a participação da sociedade, um amplo diagnóstico da oferta atual e das principais carências para se alcançar a universalização da educação básica obrigatória. Esse diagnóstico deve estar articulado à discussão democrática do Plano de Educação do Município, com o envolvimento também da rede estadual, já que é igualmente responsável pelo ensino fundamental, além de formação de professores etc. O diagnóstico pode apontar que, para cumprir a obrigação de universalização com garantia de qualidade seja necessário mobilizar novos recursos, por exemplo, com a elevação da vinculação de impostos para 30% ou 35%. Não se admite retrocesso na política pública já implantada, por isso é igualmente exigível que se respeite os padrões de qualidade, como jornada, número máximo de crianças por educador e grupamento, equipamentos básicos necessários, formação etc; por isso, é necessário estabelecer um plano qualificação das unidades educacionais existentes e de investimentos em novas unidades, com a colaboração do estado e do governo federal, e um plano de ampliação do quadro dos trabalhadores da educação. O Plano de Educação do Município não depende do Plano Nacional de Educação, mas é importante assegurar que os debates e desafios identificados no plano local sejam levados como cobrança por mais recursos e apoio, sobretudo, aos entes federados com menos recursos.
Quantas vagas são necessárias na faixa de 4 a 5 anos? Quantas faltam? Onde a situação é pior?
Salomão Ximenes: A taxa de frequência à pré-escola ainda está abaixo da meta determinada no Plano Nacional de Educação 2001 – 2011, que determinava o atendimento de 80% da população, no mínimo. Chegamos a 2011 com uma taxa de frequência bruta da população de 4 e 5 anos de 77,4%, sendo que quando olhamos especificamente a população com 4 anos de idade a frequência é de apenas 55,2%. Alcançar 100% dessa população até 2016, portanto, não é um desafio pequeno, significa incluir cerca de 1,3 milhão de crianças de 4 e 5 anos. Hoje, a região com mais alta taxa de frequência é o Nordeste, com cerca de 83%; seguida do Sudeste, com 81%. A mais baixa está no Norte, com 65%, mas as taxas do Sul e do Centro-Oeste também são muito baixas, cerca de 66% (Fonte: IBGE/PNAD, Síntese de Indicadores Sociais, 2012). Parte da explicação desse fenômeno atípico, já que em geral os indicadores sociais são menos positivos no Norte e Nordeste, pode ser encontrada quando se verifica a carga-horária oferecida. Por isso, é fundamental assegurar que a inclusão se dê com a garantia de elevação da oferta em tempo integral e sem impactos negativos na etapa creche. Esses dados precisam ser amplamente disponibilizados para o acompanhamento da população.
Fala-se que alguns municípios estão reduzindo as vagas ou a carga horária de 0 a 3 anos para dar conta de todos? Isso realmente está acontecendo (ou poderá acontecer)? Nesse caso, o que é que os pais e mães que trabalham fazem com os bebês no resto do dia?
Salomão Ximenes: Há duas dimensões do mesmo problema: primeiramente, não é juridicamente admissível reduzir a jornada como falsa medida de inclusão. Isso representa retrocesso social, que deve ser denunciado ao Ministério Publico e à Justiça, caso se confirme. O Plano Nacional de Educação 2001-2011 (Lei 10.172/2001) já determinava a adoção progressiva do atendimento em tempo integral na educação infantil e o próximo PNE, em discussão no Congresso Nacional, tenderá a manter tal obrigação. Por isso, nos Municípios onde o sistema funciona já com oferta em tempo parcial, o que se exige é o estabelecimento, no planejamento público, de uma ampliação progressiva da jornada. Isso porque toda a política educacional, e sobretudo a política de educação infantil, é orientada pelo princípio do interesse superior da criança (Convenção sobre os Direitos da Criança). Com base nessa ideia, a realidade aponta que se deve assegurar ao máximo a jornada integral na creche a ampliar a jornada na pré-escola, adequando à necessidade dos pais ou responsáveis e à qualidade do atendimento oferecido.
A Ação Educativa está participando de um plano para ampliar as creches junto com o Ministério Público de SP e a prefeitura de São Paulo. Essa seria uma das formas de aumentar as vagas para essas crianças de 4 a 5 anos que não estavam nas escolas antes?
Salomão Ximenes: No município de São Paulo, na verdade, estamos exigindo que a prefeitura apresente uma solução de conjunto, que articule ampliação das oportunidades de acesso à creche, com atendimento de toda a demanda potencial até 2020 e de pelo menos 50% da população de 0 a 3 anos em 2016 (o PNE 2001 -2011 já estabelecia essa meta para seu último ano de vigência); qualificação da rede, com garantia de padrão básico de funcionamento tanto nas instituições diretas como conveniadas e um regime de monitoramento e responsabilização, que permita à sociedade acompanhar o cumprimento das metas e cobrar. No caso da pré-escola, cobramos sua universalização até 2015 e o estabelecimento de metas de ampliação da oferta em tempo integral, praticamente inexistente hoje na Cidade. Mas o planejamento detalhado é de responsabilidade da prefeitura, que deve apresenta-lo agora para diálogo no Judiciário. O essencial dessa experiência, além da articulação inédita de sociedade civil, Ministério Público, advogados, Defensoria Pública e Judiciário, é deslocar o foco da exclusão cotidiana e individualizada, que é de milhares de crianças todos os dias, para exigir uma mudança no patamar da política pública que seja capaz de oferecer, com qualidade, uma perspectiva de solução para a gravíssima exclusão atual. A experiência de exigir um plano de ampliação com qualidade, que possa ser monitorado socialmente, no caso, para assegurar a universalização da pré-escola até 2016 e o aumento de vagas em creches no mesmo período pode sim contribuir de forma decisiva para o alcance desse objetivo e dever do Estado.
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EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 59, DE 11 DE NOVEMBRO DE 2009
Comentários às mudanças promovidas pela Emenda Constitucional n° 59/2009