Por Júlia Daher
Está sujeito a apreciação conclusiva na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados um projeto de lei que altera o Plano Nacional de Educação (PNE) para que a versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) seja aprovada pelo Congresso Nacional. O deputado proponente, Rogério Marinho (PSDB-RN), justifica, no documento, que aprovar a base “é tarefa que em muito exorbita a função legal do Conselho Nacional de Educação (CNE)” e extrapolaria suas incumbências de “formular e avaliar a política nacional de educação; zelar pela qualidade do ensino; velar pelo cumprimento da legislação educacional; assegurar a participação da sociedade no aprimoramento da educação brasileira”.
Atualmente, a segunda versão da BNCC passa por seminários estaduais organizados pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) que contam com a participação de estudantes, profissionais da educação e demais interessados em debater o projeto curricular. Ao final dos encontros, os organizadores sistematizarão as contribuições em uma terceira versão, que será encaminhada ao MEC para que o CNE possa aprovar uma versão final do documento.
Em entrevista ao Observatório, Marinho destaca duas motivações para a mudança do caminho da Base. A primeira seria a falta de representatividade da população brasileira no Conselho Nacional de Educação, o que faria do Congresso um lugar mais legitimo para avaliar um projeto alcance nacional. “O Brasil estabelece na sua constituição que quem representa o povo brasileiro é a Câmara Federal e o Senado da República como casa revisora. Aqui no parlamento são votados projetos os mais díspares possíveis em que necessariamente deputados e senadores não são especialistas, mas convocam especialistas, como ocorreu, por exemplo, com o Código da Mineração, o Estatuto do Índio, o Código do Processo Civil, o Marco Regulatório da Internet, o Sistema Único de Saúde. Se discute no congresso, com o apoio da própria legislação, todos os assuntos que dizem respeito a sociedade, inclusive a educação”, defende.
Outro fator, segundo o deputado, seria a presença de inconsistências na versão atual da Base, que precisariam ser resolvidas antes da aprovação. “A qualidade deste currículo que foi apresentado publicamente para consulta é deplorável, equivocado. Com todo respeito aos técnicos que elaboraram: há um evidente viés doutrinário de um pensamento único, inclusive falta de evidências científicas, ‘forçação de barra’ comissões propositais, enfim, é assustador”, pontua. Segundo ele, o projeto de lei foi apresentado “para que pelo menos a discussão se estabeleça”, propiciando a elaboração de um documento “mais consistente”.
Embora Marinho não se declare um integrante do Escola Sem Partido, sua argumentação sobre a base é muito próxima da de Miguel Nagib, advogado e fundador do movimento. Em artigo publicado no jornal Gazeta do Povo, Miguel defende que “se alguém deve ter o poder de decidir o que é que dezenas de milhões de indivíduos serão obrigados a estudar ao longo da sua vida escolar, que seja o Parlamento, e não um punhado de agentes públicos indicados pelo chefe do Executivo”. Procurado pelo Observatório, ele alegou estar impedido de dar entrevistas por causa de um problema nas cordas vocais, indicou a leitura do artigo e frisou que este representa sua opinião e não a do movimento como um todo.
Para Ana Helena Altenfelder, superintendente da ONG Cenpec e uma das autoras da pesquisa “Consensos e dissensos em torno de uma base nacional comum curricular no Brasil”, não é possível aprovar um documento desta envergadura sem um conhecimento especializado sobre currículo, educação e processos de ensino e aprendizagem, cabendo, portanto, ao CNE, como órgão técnico legalmente instituído, a tarefa da leitura final.
“Discutir a base no Congresso é um contrassenso! A base é uma das metas do Plano Nacional de Educação, que foi objeto de discussão nas conferências municipais, estaduais e nacional. A proposta tramitou no Congresso por quase quatro anos, foi o projeto que mais recebeu emendas e os próprios parlamentares aprovaram que a base fosse avaliada pelo CNE. Portanto, os parlamentares que estão pleiteando esse caminho estão indo contra uma decisão do próprio Congresso”, sustenta.
Já para Fernando Penna, integrante do movimento Professores Contra o Escola Sem Partido e professor da Universidade Federal Fluminense, além da não especialidade do Congresso, um entrave seria seu caráter conservador, que já excluiu as questões de gênero e sexualidade dos Planos de Educação, sob o argumento de que se trataria de uma tentativa de destruir a família tradicional. “Tem setores ali que não conhecem a questão educacional e têm sido enganados por uma verdadeira campanha de medo”, enfatiza.
Embora a aprovação do Projeto de Lei 4.486/2016 resulte em uma mudança no estabelecido pelo PNE, Marinho não vê a questão como um problema, destacando a importância de elaborar com cautela o documento, pensando em seus efeitos a longo prazo. “Apesar de haver uma lei que determina um prazo, que é o PNE, uma lei pode ser modificada por outra lei. A lei é um consentimento comum. E o mais importante neste momento é que nós tenhamos um pouco de calma para, ao invés de fazer o que se propõe, ou seja, melhorarmos a qualidade da educação, a gente a piore ainda mais”, defende.
Outro obstáculo no caminho da Base é a destituição do CNE. No final do mês de julho, o presidente interino Michel Temer (PMDB) revogou a nomeação de 12 conselheiros que haviam sido nomeados pela presidenta afastada Dilma Rousseff (PT) no início de maio. “O caminho da base está preenchido por ameaças. De um lado, você tem a possibilidade dela ser levada ao congresso, onde o apoio a um projeto como o Escola sem Partido parece muito grande; de outro lado, você tem o caminho por dentro do MEC, passando por um CNE que já começou a ser desmontado”, lamenta Penna.
Neutralidade
Não é a primeira vez que a base é acusada de “doutrinação”. Em 31/5, a Câmara dos Deputados promoveu um debate sobre a segunda versão da base composto por quatro mesas temáticas, cuja maioria dos participantes eram entusiastas do Escola Sem Partido, ou integrantes de institutos empresariais.
Embora o Movimento Escola sem Partido se apresente como “apartidário”, acompanhando seus apoiadores é possível perceber um alinhamento específico. Em levantamento feito pela revista Nova Escola sobre projetos de lei apresentados nos legislativos do país que têm como base argumentações similares às do Escola Sem Partido, nota-se que todos se configuram como partidos de direita e centro, como o PSC, o PSDB e o PMDB. Também é relevante atentar à vinculação religiosa dos proponentes: 11 dos 19 proponentes de projetos inspirados pelo movimento são ligados a alguma igreja.
“Avalio que estes projetos de lei foram fundamentados a partir do desconhecimento do que ocorre em sala de aula, do processo educativo, da relação professor-aluno e do papel da educação. Ao mesmo tempo em que se dizem contrários a uma doutrinação ou à presença de uma ideologia, é evidente e claro que existe um posicionamento político e a defesa de outra ideologia nesses projetos”, comenta Anna Helena. Ela argumenta que a ideia de neutralidade é um mito, ligado a uma visão positivista de mundo já ultrapassada pela própria ciência.
Segundo a análise de Penna, projetos como este têm proposto algo impossível de ser concretizado: dissociar os conteúdos disciplinares da realidade dos alunos. “Na tentativa de fazer valer estas ideias, eles querem proibir o professor de discutir basicamente qualquer coisa. Eles só querem transmitir conhecimento, sem discutir valores, não tem nem como aplicar isto na prática”, explica.
Assedio ideológico versus direito à informação
Outro projeto de autoria do deputado Rogerio Marinho, também em tramitação no congresso, cria uma nova tipificação de crime: o assédio ideológico. Segundo o documento, tal desvio consistira em “expor aluno a assédio ideológico, condicionando o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou constranger o aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente”.
Penna chama atenção para a judicialização do espaço escolar que tal iniciativa pode acarretar. “[O Projeto de Lei] muda nosso código penal para criar um novo crime, tipicamente escolar, que tem como vítima os alunos. E dentro desta concepção os criminosos, na maioria das vezes, são os professores. E o mais impressionante é que o crime pode acontecer dentro da escola ou fora dela. Professores que têm seus alunos nas redes poderiam ser enquadrados neste crime”, comenta.
Para Anna Helena, isto pode acarretar na censura de temas importantes e na sonegação de informação no espaço escolar. “Não podemos permitir que os estudantes sejam privados de acessar conhecimentos que são de direito”, alerta. “Caem no equívoco de achar que o aluno tem como desfrutar da sua liberdade de aprender sem que o professor possa recorrer a uma pluralidade de concepções pedagógicas e da sua liberdade de ensinar”, argumenta Fernando.
Uma alternativa a tal tipo de legislação que não judicialize a sala de aula é fortalecer os espaços de gestão democrática da escola. “Todos os pais e responsáveis pelos alunos têm o direito de se apropriar dos conteúdos e debates que ocorrem no interior do espaço escolar. A comunidade pode, inclusive, questioná-los, não só do ponto de vista ideológico e moral, mas também curricular. Isso faz parte da gestão democrática. Contudo, ao contrário do que prega o Escola Sem Partido, essa discussão deve ocorrer dentro da própria escola, e não no legislativo ou no judiciário. Ao mesmo tempo, isto não significa que a escola precisa acatar toda e qualquer reclamação, mas é seu papel abrir espaços e fomentar o debate e o diálogo com toda a comunidade escolar. Para que isto ocorra, temos de seguir na luta para o fortalecimento do conselho escolar e pela construção coletiva do Projeto Político Pedagógico, por exemplo”, sugere Anna Helena.
Fonte: Observatório da Educação