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Dilemas e desafios da cooperação internacional brasileira: uma agenda em construção

Para introduzir a série de matérias “Dilemas e desafios da cooperação internacional brasileira: uma agenda em construção”, o texto a seguir apresenta alguns dos grandes acontecimentos que alteraram a dinâmica mundial nas últimas décadas.
O papel do Brasil no Sistema Internacional foi significativamente ampliado neste início de século em funções de transformações internas e externas, para compreender melhor os arranjos atuais esta matéria propõe uma breve contextualização desse período e busca, também, preparar o terreno para discutir o tema do próximo artigo: “A política externa brasileira: o que mudou neste começo de século?”.

Crises e transformações na ordem mundial: o século XXI e suas novas configurações

O mundo presenciou, ao longo do século XX, um processo de estratificação internacional em função dos efeitos da Revolução Industrial e de duas guerras mundiais e, posteriormente, da revolução tecnológica, amplificados nas décadas recentes pela globalização e liderados pelos países chamados desenvolvidos (Estados Unidos, Japão, Reino Unido e França).

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos despontaram como superpotência mundial exercendo influência determinante nas relações internacionais. Diversos acontecimentos foram importantes para o fortalecimento do poder norte-americano, tais como a vitória na Segunda Guerra, a corrida armamentista durante a Guerra Fria, o fortalecimento dos ideais liberais com a queda do regime soviético, a liderança exercida na nova revolução das tecnologias da informação e da comunicação nos anos subsequentes à década de 1970, o poder financeiro com a consolidação do dólar como moeda mundial, grande competitividade econômica, significativa influência – se não controle – sobre os organismos internacionais e superioridade militar, para listar alguns dos pontos expressivos.

Os EUA concentraram em suas mãos, durante a década de 1990, todos os instrumentos de poder indispensáveis ao exercício da hegemonia econômica, política e social. Arbitraram isoladamente o sistema monetário internacional, promoveram a abertura e a desregulamentação das demais economias nacionais, defenderam o livre comércio e promoveram ativamente a convergência das políticas macroeconômicas, guiadas pelos ideais do neoliberalismo, entre quase todos os países.

Esse cenário de unipolaridade norte-americana, acompanhado pelas grandes potências europeias, se tornou explícito após a queda do muro de Berlim e permaneceu até o início deste século XXI quando sinais de declínio começaram a surgir. Sem a ambição de abordar todos os acontecimentos que colaboraram e vêm colaborando para a transformação da ordem mundial nos últimos anos, alguns fatos não podem ser ignorados nesse processo: como a emergência do leste-asiático, o desgaste financeiro e político da Guerra ao Terror empreendida pelos EUA, a crise ambiental consequência do modelo capitalista fossilista adotado e, mais recentemente, a crise financeira.

O despontar chinês e de outros países do leste asiático no cenário internacional implicaram mudanças significativas para a econômica mundial. A abertura da diplomacia conduzida por Deng Xiaoping, a partir do final dos anos 1970, e as reformas promovidas no sentido de atrair investimentos estrangeiros, com a criação das Zonas Econômicas Especiais, introduziram uma nova dinâmica econômica na China. Esse conjunto de reformas era, basicamente, orientado para promover incentivos à industrialização, grandes investimentos em infraestrutura e mecanismos de estímulo às exportações voltados à iniciativa privada, gradual liberalização de preços, descentralização fiscal, maior autonomia para as empresas estatais e eficiência do sistema bancário e de um mercado de capitais.

Sob o conceito de “socialismo de livre mercado” a China logrou, ao longo das últimas décadas, um alto crescimento da capacidade produtiva do país, das suas empresas e, consequentemente, da geração de empregos – embora à custa de precários direitos sociais e exploração insustentável de recursos naturais. Hoje a economia chinesa é a segunda maior no mundo e o país é parceiro central de diversas outras economias, inclusive dos Estados Unidos, ávidos consumidores de produtos industrializados chineses – além do fato, não menos importante, da China ser a grande financiadora do déficit orçamentário dos EUA por meio da compra, com suas reservas em dólares, de títulos do Tesouro norte-americano.

A Guerra ao Terror com a invasão ao Iraque e Afeganistão, defendida pelo então presidente George Bush após os ataques de 11 de setembro, implicou gastos de mais de 1 trilhão de dólares para a econômica norte-americana, além de um sério desgaste político e social. Em seguida, os Estados Unidos começam a enfrentar as intensas complicações no setor financeiro com a crise do Subprime em 2007. A formação da bolha imobiliária seguida da severa queda no preço dos imóveis resultou em impactos seríssimos para a população norte-americana e no desmoronamento da crença nos mercados financeiros eficientes. Os lares norte-americanos testemunharam a evaporação de US$ 13 trilhões no valor de suas propriedades, mais de 6 milhões de empregos foram perdidos e a taxa de desemprego alcançou níveis comparáveis apenas aos registrados após a Grande Depressão, em 1930 [1].

Na esteira da crise nos Estados Unidos veio a crise na Zona do Euro. A incorporação de países com diferentes condições produtivas e econômicas na União Europeia somada a criação de uma moeda única se mostrou uma armadilha em tempos de crise. Com a crise de 2008 os países periféricos do bloco endividaram-se para salvar seus bancos e instituições financeiras e se viram, depois, inviabilizados de utilizar da ferramenta cambial para controlar suas economias; ao não terem moeda própria, esses países não puderam promover desvalorizações cambiais que impactariam nos salários e preços de suas economias tornado, por consequência, suas exportações mais competitivas. Como estavam aderidos ao Euro ficaram sem autonomia para lidar com a crise internamente.

A Europa se viu mergulhando em uma forte recessão acompanhada dos velhos receituários neoliberais de austeridade fiscal para buscar a saída da crise, baseados em políticas de altas taxas de juros, liberalização do comércio, liberalização dos mercados de capitais, privatização e reestruturação do mercado financeiro. Essas políticas defendidas pelo Fundo Monetário Internacional representam, de acordo com o economista Stiglitz, um compromisso ideológico, quase que dogmático, que leva a muitos erros e penaliza os mais pobres em prol das corporações e das instituições multilaterais [2].

Os desdobramentos das escolhas políticas e econômicas orientadas, em grande medida, pelo receituário neoliberal, resultaram em crises múltiplas para diversos países, inclusive para as grandes potências. A centralização e sobreposição do setor financeiro no sistema provocaram, e continuam provocando, um aumento acentuado dos níveis de desigualdade no mundo além de significar sérios impactos ambientais em função da matriz energética fossilista adotada e da lógica da descartabilidade. As implicações para o meio ambiente do modelo econômico atual são diversas e severas: perda de biodiversidade e de solos férteis, deflorestação, a acidificação dos mares, poluição, utilização irresponsável da água potável disponível e a destruição do ozônio estratosférico, para citar algumas.

Nesse sentido o caráter múltiplo da crise fica evidente, assim como as contradições do próprio sistema neoliberal. Para o sociólogo estadunidense Immanuell Wallerstein (2004), o Sistema Mundial estaria vivendo uma crise profunda e radical, a crise do próprio Modern World System[3], que não sobreviveria até o final deste século. Para o sociólogo italiano Giovanni Arrighi (2008), os Estados Unidos vivem sua “crise terminal” da hegemonia[4], teoria que ele defende baseado em quatro acontecimentos: grandes expansões financeiras sistêmicas, intensificação da competição estatal e capitalista, escalada global dos conflitos sociais e a emergência de novas configurações de poder que abalam o poder global dominante.

Já para o professor de Economia Política Internacional, José Luis Fiori, os sintomas apresentados por Arrighi não são de fato um prelúdio do fim do século norte-americano, e ele também não advoga que o Modern World System esteja caminhando para o fim. Ainda assim, Fiori concorda que o Sistema Mundial está em transe e que os Estados Unidos enfrentam desafios para manter seu controle global[5].

Se nos apoiarmos tanto nas avaliações mais radicais sobre as mudanças na ordem mundial ou nas mais cautelosas e/ou mainstream ainda assim podemos observar que o cenário está mudando, que a unipolaridade do sistema caminha para uma multipolaridade ainda que não em todas as áreas. Nas palavras do cientista político norte-americano, Samuel Huntington, “o sistema internacional atual possui diversas grandes potências de forças comparáveis que cooperam e rivalizam entre si e, no qual, é necessário existir uma coligação de Estados importantes para solucionar os grandes problemas internacionais” (1999). Embora Huntington defenda que a unipolaridade não se aplica a realidade atual, também não defende que vivemos em um modelo plenamente multipolar, ele apresenta um conceito híbrido caracterizado por um modelo ‘uni-multipolar’[6]. Seguindo nessa linha o cientista político Pierre Hassner defende que o mundo atual é unipolar do ponto de vista militar, mas multipolar do ponto de vista econômico e, sobretudo, cultural. E essas duas realidades podem muito bem coexistir num contexto em que os atores internacionais são complexos e as questões entre eles não mais se resolvem exclusivamente pelo poderio militar[7].

Assim como a Índia e, mais recentemente, a África do Sul, o Brasil se desenvolveu como potência regional e mercado emergente ao longo das últimas décadas. A industrialização brasileira se iniciou em meados do século XX com o modelo de industrialização por substituição das importações, que nos anos 70 passou a envolver um componente exportador também. Apesar da crise vivida nos anos 1980 e 1990 e dos impactos do Consenso de Washington e a consequente implantação de ajustes estruturais pautados por uma lógica privatista, o Brasil entrou no século XXI apresentando estabilidade tanto política quanto econômica. A partir de então um projeto de desenvolvimento marcado, entre outras coisas, pela importância do setor agropecuário e extrativista e por programas de distribuição de renda que possibilitaram a ascensão de uma nova classe de consumidores vindos de estratos mais pobres da sociedade se desenrolou.

Apesar da persistente desigualdade social e dos desafios para superação da pobreza e analfabetismo, a estabilização macroeconômica e a manutenção da governabilidade colaboraram para o desenvolvimento nacional e deram condições para uma política externa mais ativa. De acordo com a professora de Relações Internacionais Maria Regina Soares de Lima, dentre as ações empreendidas no plano da diplomacia econômica multilateral que colaboraram para uma estratégia de autonomia da inserção internacional do Brasil podemos citar: a revitalização e ampliação do Mercosul; a intensificação da cooperação com países da América do Sul e africanos; “relações maduras” com os Estados Unidos; importância das relações bilaterais com potências regionais como China, Índia, Rússia e África do Sul; luta por uma vaga como membro permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas; participação nos principais exercícios multilaterais existentes, assim como na conformação das novas regras que irão reger as relações econômicas com vistas à defesa dos interesses dos países em desenvolvimento[8].

A priorização de uma agenda voltada para os países do Sul global tornaram a Cooperação Sul-Sul estratégica para a projeção internacional brasileira. Com o apoio dos países do sul, principalmente do continente africano, o Brasil conseguiu assegurar para seus diplomatas postos de grande importância para as relações internacionais, como o de Roberto Azevedo para diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de José Graziano da Silva para diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

O adensamento das relações comerciais somado ao envolvimento e ampliação de mecanismos multilaterais com participação ativa de atores do sul global (como G-20, BRICS, IBAS, ASPA, FOCALAL, e outros) incentivam a colaboração entre esses países. Além de interesses comuns no campo econômico também compartilham problemas estruturais característicos dos países em desenvolvimento. Essas similaridades e confluência de interesses em diversos setores-chave evidenciam e fortalecem fatores de complementariedade em detrimento dos de competição no sistema internacional[9].

A importância e a magnitude das transformações em curso na ordem mundial é evidente. A complexidade da relação entre os atores internacionais marcada por questões de segurança, desenvolvimento, direitos humanos, gestão da economia e crise ambiental, somada a redistribuição de poder entre os players tradicionais e novos reconfiguram o ordenamento mundial e sua agenda. A emergência dos países do Sul, a perda de influência hegemônica das potências tradicionais e as múltiplas crises em curso oferecem uma oportunidade para que novos paradigmas sejam postos em prática nas relações entre os países.

O processo de transformação apresenta ações extremamente contraditórias, permeado por incertezas e indefinições sobre que caminhos seguir ou construir. O desafio é, justamente, aproveitar o momento de abertura para apresentar alternativas e fortalecer paradigmas orientados para o desenvolvimento de um mundo sustentável em todas suas esferas – econômica, política, social e ambiental. Isso significa construir espaços que sejam pautados por relações justas e respeitosas entre as Nações e que conte com instituições multilaterais que representem a pluralidade de seus atores e colaborem para o bem-estar da humanidade.

 

[1] Paul Krugman (2009), O Estado de S. Paulo, 6.9.2009

[2] Joseph E. Stiglitz (2011), Carta Maior, 10.12.2011

[3] Immanuel Wallerstein (2012), Outras Palavras 12.11.2012

[4] Giovanni Arrighi. O longo século XX. São Paulo: UNESP, 1994.

[5] José Luis Fiori. O poder americano. Petrópolis: Vozes, 2004.

[6] Samuel Huntington (1999), “The lonely superpower”, Foreign Affairs, março-abril, 1999.

[7] Pierre Hassner (2003), Washington et le monde: Dilemmes d’une superpuissance,Paris 2003.

[8] Maria Regina Soares de Lima, A Política externa brasileira e os desafios da cooperação Sul-Sul, 2005.

[9] Ibidem, 2005

 

 

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