Com este parágrafo inicia o livro Apartamento 34, de Sergio Haddad, um romance histórico que descreve sobre os dilemas de um grupo de jovens que buscavam questionar a realidade imposta naquele momento histórico. Um tempo de dificuldades não só no Brasil, mas em toda a América Latina, tomada por governos militares que usaram da repressão, com prisões e torturas, para derrotar o movimento democrático civil que buscava empreender reformas de base nos países da região.
Nestes dias em que são lembrados no Brasil os fatos relativos aos cinquentas anos do golpe, alguns temas ganharam destaque. Em primeiro lugar, não há como esconder a violência ocorrida contra cidadãos comuns baseado no argumento de que haveria um golpe comunista à vista e que o governo legitimamente escolhido pelo povo deveria ser derrubado rompendo a democracia vigente, ainda que débil. Não há como apoiar um regime que se impõe à força em função de discordâncias no posicionamento político de quem está no poder. Nada justificava o rompimento da ordem democrática.
Mas pior do que isso foi a postura autoritária e de intolerância que levava ao aniquilamento do outro por discordância política por meio de perseguições, ameaças, prisões, desaparecimentos e tortura. O que hoje tem vindo à tona e que até o momento não havia se tornado totalmente claro foi o horror dos métodos utilizados pelos militares para obter informações ou intimidação dos seus opositores. Precisamos saber a verdade para que sejam punidos os responsáveis e para que nunca mais tenhamos fatos como estes.
É preciso reconhecer também, como aponta a citação acima, que não foram apenas os militares que estiveram envolvidos nos fatos absurdos daquele momento. Eles tinham apoio de setores civis da sociedade brasileira que não só estimularam o seu comportamento como também sustentaram com recursos e estratégias, como por meio da mídia em geral. Esse fato ainda não está completamente esclarecido e não se sabe o quanto do impacto da participação destes setores pode ser considerado como de corresponsabilidade pelos abusos ocorridos.
Outro tema que tem sido bastante debatido diz respeito ao legado deste golpe para os dias atuais. O quanto a violência institucionalizada naquele momento pelos militares ainda permanece no nosso cotidiano, com a presença das polícias militares, com as torturas como práticas em muitos centros de detenção, com o autoritarismo de uma polícia que ao invés de proteger o cidadão ou cidadã os toma como inimigos a serem combatidos, em particular os mais pobres, os jovens, negros, moradores das periferias e das margens da sociedade brasileira. E o quanto este autoritarismo ainda permanece junto à sociedade civil que se vê no direito de fazer justiça com as próprias mãos, quase sempre contra os mais pobres e mais fracos. O legado de 20 anos de ditadura ainda está no corpo e na mente da sociedade brasileira.
Entretanto, é importante também destacar o papel da sociedade civil que atuava em outro campo, ajudando a reconstruir o tecido social que foi rompido com o golpe, costurando de baixo para cima o processo de redemocratização e de defesa dos direitos humanos. A Igreja católica teve um papel central neste processo, organizando a população e conscientizando sobre a falta de direitos e a necessidade de se juntar para lutar contra a violência implantada. Movimentos sociais e organizações não governamentais que nos espaços clandestinos e nas brechas do sistema autoritário trabalharam para a democratização da sociedade brasileira e na defesa dos que estavam sendo perseguidos.
Finalmente, vale lembrar neste momento o importante papel da solidariedade internacional que recebeu exilados, financiou e apoiou aqueles e aquelas que ficaram e resistiram, além de denunciar internacionalmente as terríveis violações de direitos que ocorria naquele período. Não há como esquecer o papel de algumas organizações internacionais e agências de cooperação que apoiaram o surgimento de muitas das ONGs que atuaram de forma relevante para minorar o desespero daqueles que eram perseguidos. Não podemos esquecer o papel de ONGs internacionais, como a Anistia Internacional, que ainda no seu nascedouro teve o Brasil como um dos focos de preocupação e atuação ao denunciar violações e proteger brasileiros e brasileiras que sofriam perseguições e eram ameaçados pelos órgãos de repressão.
Editorial
“No dia 31 de março de 1964, um golpe militar no Brasil destituiu o governo do presidente João Gourlart e uma ditadura foi implantada de forma violenta, com restrições de direitos civis para a população. Anos antes, em 1954, militares haviam tomado o poder na Guatemala e no Paraguai. Em 1973, caíram os governos civis do Chile e do Uruguai e, em março de 1976, o da Argentina. Depois foi a vez do Peru, Bolívia e outros países da América Central. A democracia na América Latina que, tradicionalmente, já era frágil, entrava em mais um período de retrocesso, com apoio de suas elites, que não abriam mão dos seus privilégios, os militares como atores, e as bênçãos dos Estados Unidos.”