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Manifesto Nacional das Jovens Negras Ativistas – Projeto MUDE com Elas

Por uma Política Nacional de Cuidados e Trabalho Digno construída a partir das nossas vivências

Foto: Webert da Cruz

A construção de um futuro digno para jovens mulheres negras exige o reconhecimento das nossas vivências, saberes ancestrais e do papel que o Estado deve assumir na construção e execução de políticas públicas para garantia de direitos e oportunidades. Os conhecimentos produzidos pelas nossas comunidades, pela realidade periférica e pelas histórias das mulheres negras são fundamentais para apoiar e construir políticas públicas intersetoriais que enfrentem desigualdades e ampliem o acesso real à educação, ao trabalho digno, ao cuidado nas suas mais diversas formas e ao bem viver.

Quem somos?

Somos jovens mulheres negras ativistas, atuantes em diferentes territórios de São Paulo, participantes do Projeto Mude com Elas, uma iniciativa da Ação Educativa, em parceria com o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e Terre des Hommes. Esse projeto, através da Rede Multiatores, tem como foco combater as barreiras que jovens mulheres negras enfrentam para acessar, permanecer e progredir no mundo do trabalho. Afirmamos o trabalho digno como condição primordial ao bem-viver (direito à vida e qualidade de vida).

Ao longo de um ano de escutas, vivências, ações com a juventude negra e periférica e estudos legislativos, construímos coletivamente uma agenda política que nasce das nossas experiências como jovens mulheres negras que cuidam de si, da comunidade que estão inseridas, trabalham, sustentam famílias, estudam, sofrem com as desigualdades estruturais e, ainda assim, seguem criando novas realidades, cultivando vida, resistência e mantendo viva a esperança.

Nos organizamos porque entendemos que nossas experiências são conhecimento. Nossas narrativas são dados. Nossas urgências são políticas públicas.

Por que estamos aqui: o que dizem e o que está ausente nas leis

Reconhecemos a importância da aprovação da Política Nacional de Cuidados, instituída pela lei nº 15.069 de 23 de dezembro de 2024, como um passo inicial para reconhecer a invisibilidade do trabalho do cuidado no Brasil, trabalho este historicamente realizado por mulheres negras. No entanto, o desenho atual da política ainda não específica raça, gênero e território como um grupo prioritário, deixando em aberto se ela de fato considerará as desigualdades que recaem sobre as jovens mulheres negras.

Da mesma forma, destacamos a Lei da Aprendizagem, Lei nº 10.097, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece direitos e oportunidades para jovens no mundo do trabalho, mas que ainda não alcança de forma justa a juventude negra periférica, que enfrenta barreiras raciais, estruturais e territoriais para acessar e permanecer nas oportunidades prometidas por essa legislação. Além disso, a falta de indicadores sobre a eficácia da lei não permite que visualizemos se ela realmente contribui para a inserção e permanência da juventude preta no mercado de trabalho ou apenas fortalece a ideia do uso de mão de obra barata através dessas jovens.

Por que apresentamos este manifesto

É diante dessas contradições e ausências citadas, que apresentamos este manifesto. Porque, mesmo quando o Estado avança em leis e programas, as jovens mulheres negras continuam sendo desconsideradas. Porque nossas vidas, nossos trabalhos, nossos territórios e nossos corpos continuam sendo tratados como secundários, as políticas existem, mas não incluem e não priorizam as jovens negras, que são a base da economia do cuidado e da juventude trabalhadora no Brasil.

Não é possível construir cuidado, trabalho digno ou bem viver enquanto as jovens mulheres negras continuarem sendo tratadas como margem e não como referência!

A Política Nacional de Cuidados ainda não alcança quem mais cuida

As desigualdades de gênero, raça e território seguem determinando quem tem acesso a direitos, proteção social e oportunidades profissionais no país. No campo do cuidado e do trabalho para juventudes, especialmente para jovens mulheres negras, ainda há uma distância entre o que está escrito na legislação e a realidade vivida diariamente por esse grupo.

Embora a Política Nacional de Cuidados seja um avanço, ela não define raça, gênero nem juventude como principais marcadores sociais atravessados pelo trabalho do cuidado. isso compromete sua efetividade, pois 69,9% de todo o trabalho doméstico e de cuidado no Brasil é realizado por mulheres negras (IPEA, 2025). Do total, 93,9% são mulheres e apenas 6,1%, homens, e uma parte significativa desse cuidado é sustentada justamente por jovens negras.

Sem nomear quem historicamente sustenta o cuidado, o Estado reforça desigualdades e mantém invisível a sobrecarga sobre as jovens mulheres negras, que acumulam jornadas e têm suas possibilidades de estudo, trabalho e autonomia interrompidas. Segundo análise da Gênero e Número com base em dados do IBGE de 2023, 77% das jovens de 15 a 29 anos que deixaram de estudar ou trabalhar por causa do cuidado doméstico são mulheres negras.

Além disso, no caso da Política Nacional de Cuidados, o desenho atual da lei não garante que os estados e municípios implementem a política de forma efetiva. A ausência de obrigatoriedade na adesão aprofunda desigualdades históricas e coloca em risco o propósito da política: reconhecer, redistribuir e reduzir a sobrecarga dos cuidados, incluindo o cuidado doméstico, comunitário e a maternagem, que recai de forma desproporcional sobre mulheres negras, jovens e periféricas.

1. Cuidotecas e serviços públicos só funcionam se chegarem aos territórios negros

A criação de cuidotecas e espaços públicos de cuidado é um avanço, mas seu impacto depende da priorização dos territórios onde as mulheres negras vivem. Para que a política reduza, de fato, a sobrecarga, é necessário assegurar que esses serviços sejam implementados prioritariamente nos territórios onde vivem as mulheres negras, que são as que mais acumulam responsabilidades de cuidado no Brasil. Sem isso, a política corre o risco de beneficiar quem já tem acesso, e não quem mais precisa.

2. Falta nitidez sobre o que é cuidado e quem cuida

Além disso, o texto não define claramente o que é o cuidado, quem são as trabalhadoras do cuidado nem como se dará a compatibilização com o trabalho remunerado. Isso evidencia que o Estado ainda não identifica plenamente quem está na linha de frente do cuidado e reproduz invisibilizações históricas, deixando mulheres negras fora da prioridade explícita da política.

Ainda que a política, na prática, beneficie mulheres negras por diminuírem a sobrecarga e ampliarem o reconhecimento social do cuidado, é fundamental nomear explicitamente esse grupo. As mulheres negras são a base do sistema de cuidados no Brasil e invisibilizá-las contribui para a manutenção do racismo estrutural. Seguindo o princípio de antirracismo previsto na Política e Plano Nacional de Cuidados (Decreto nº 12.562/2025), nomear quem sustenta historicamente esse trabalho é parte essencial do enfrentamento ao racismo e da construção de uma política verdadeiramente equitativa.

A Lei da Aprendizagem ainda não garante acesso e permanência justa para jovens negras

A Lei da Aprendizagem (Lei nº 10.097/2000) foi criada para ampliar o acesso de jovens ao mundo do trabalho, mas, na prática, ainda não chega de forma justa às jovens negras das periferias. O projeto atual da política ignora desigualdades estruturais que marcam a trajetória dessas jovens como racismo, falta de apoio psicossocial, responsabilidades de cuidado e barreiras territoriais, criando uma discrepância entre o que está escrito na lei e a realidade vivida por esse grupo nos territórios.

Assim como no campo do cuidado, não nomear raça, gênero e território como prioridades mantém invisíveis as barreiras que impedem as jovens negras de acessarem, permanecerem e fazer progressão de carreira no mundo do trabalho. Para que a política cumpra seu objetivo, é urgente reconhecer essas desigualdades e enfrentá-las de forma direta.

Barreiras estruturais no acesso ao programa

As jovens negras encontram dificuldades desde o início dos processos seletivos. Critérios racistas, exigências estéticas e dinâmicas de seleção desconexas da realidade dos territórios periféricos impedem que muitas cheguem sequer à etapa de contratação. A mobilidade urbana também é um obstáculo, pois as vagas se concentram em regiões centrais e de difícil acesso, exigindo longos deslocamentos e custos que muitas famílias não conseguem assumir.

Permanência fragilizada e baixa efetivação

Mesmo quando conseguem entrar, a permanência não é garantida. A ausência de acompanhamento psicossocial, a dificuldade de conciliar estudo, trabalho e cuidado, e a convivência em ambientes muitas vezes hostis, racistas e pouco acolhedores aumentam as chances de ruptura dos contratos. Para muitas jovens negras, o programa de aprendizagem se transforma em mais uma etapa de desgaste, não de oportunidade. A baixa taxa de efetivação reforça a sensação de que as jovens negras são vistas como mão de obra barata e temporária, e não como trabalhadoras com direito a projeto de vida e carreira. Em vez de investir em formação, acolhimento e carreira, preferem renovar ciclos de contratação entre essas jovens, para reduzir custos, enquanto elas executam funções que deveriam ser desempenhadas por trabalhadoras contratadas de maneira formal.

Essa prática reforça a ideia de que jovens negras são vistas não como profissionais em formação, mas como força de trabalho descartável, que pode ser substituída ao fim do contrato sem que se assuma qualquer responsabilidade com seu futuro. Isso agrava desigualdades já existentes e rompe a promessa central da lei de aprendizagem, que é ser uma política de porta de entrada para o trabalho digno, e não um mecanismo de exploração.

NOSSAS DEMANDAS

1) Plano Nacional da Política de Cuidados

1.1. Definições mais nítidas

– Definir o que é cuidado de forma ampla, incluindo cuidado doméstico, comunitário, afetivo, materno e intergeracional.

– Reconhecer formalmente quem são as trabalhadoras do cuidado, especialmente mulheres negras, que historicamente sustentam essa função.

– Incluir diretrizes para remuneração, proteção social e formação continuada das trabalhadoras do cuidado.

1.2. Recorte de raça, gênero e território como obrigatoriedade

– Incluir as jovens mulheres negras como público prioritário do Plano Nacional de Cuidados, uma vez que são o grupo mais afetado pelo trabalho de cuidado.

– Coleta de dados sobre raça, gênero e idade em todas as etapas da política.

– Indicadores específicos sobre desigualdades vividas por jovens mulheres negras.

1.3. Compatibilização entre trabalho remunerado, estudo e cuidado

– Políticas integradas para jovens mães, responsáveis por familiares e jovens trabalhadoras.

– Flexibilização de jornadas e oferta de suporte psicossocial para jovens trabalhadoras e estudantes.

– Articulação com políticas de transferência de renda para reduzir a sobrecarga sobre jovens mulheres negras.

1.4. Participação social das jovens mulheres negras

– Inclusão obrigatória de jovens negras na formulação, monitoramento e avaliação da política.

– Espaços permanentes de escuta, diálogo e consulta para movimentos de mulheres negras e coletivos de juventude.

– Diretrizes para que os conselhos de políticas públicas incorporem recorte racial e geracional

1.5. Territorialização e garantia de acesso real

– Implementação obrigatória da política nos territórios com maior concentração de mulheres negras.

– Prioridade de recursos para municípios periféricos, quilombolas e vulnerabilizados.

– Monitoramento público, com participação social, sobre onde e como os serviços estão sendo implementados.

– Criação de mecanismos para impedir que a política beneficie majoritariamente regiões já estruturadas e menos vulnerabilizadas.

2) Trabalho Digno e Aprendizagem para Jovens Mulheres Negras

1.1. Enfrentamento ao Racismo Institucional e Garantia de Proteção

– Canais de denúncia sigilosos com apoio jurídico e psicológico.

– Monitoramento nacional de casos de discriminação contra aprendizes negras.

– Proibição explícita de critérios estéticos e práticas racistas.

– Sanções para empresas que reproduzem racismo institucional.

– Acompanhamento psicossocial contínuo.

– Divulgação periódica de dados de denúncia com recorte etário, de raça, de gênero e de território

1.2. Descentralização Territorial e Acesso à Aprendizagem

– Descentralização obrigatória das vagas para periferias e regiões vulnerabilizadas.

– Política de mobilidade com transporte gratuito ou subsidiado para aprendizes e jovens periféricos e em situação de vulnerabilidade.

– Parcerias com organizações comunitárias, coletivos de juventude e escolas para ampliar a oferta local.

1.3. Formação Conectada ao Futuro e às Demandas da Juventude Negra

– Cursos em tecnologia, cuidados, saúde, comunicação, sustentabilidade e serviços públicos.

– Jornadas adequadas à saúde mental e física.

– Tratar, nas escolas, conteúdos sobre os direitos da juventude.

– Revisão da eletiva projeto de vida, tornando-a alinhada à realidade da juventude negra, sobretudo periférica.

– Articulação entre formação e perspectiva de plano de carreira.

1.4. Continuidade Profissional, Estágio Remunerado e Efetivação

– Estágio obrigatoriamente remunerado como política de permanência após a aprendizagem (ensino regular básico – fundamental/médio/EJA).

– Publicação de dados sobre efetivação de jovens negras que foram jovens aprendizes.

1.5. Ampliação da Aprendizagem no Setor Público e Integração com Políticas de Cuidado

– Ampliar de 15% para 25% as vagas de aprendizagem no setor público.

– Prioridade de contratação para jovens negras, jovens mães, jovens periféricas e jovens da proteção especial.

– Inserção das aprendizes em áreas públicas de educação, saúde, assistência e cultura.

1.6. Garantias Específicas para Jovens da Proteção Especial

– Reserva de vagas para jovens egressas do acolhimento institucional.

– Planos de carreira individualizados, considerando trajetórias interrompidas e vulnerabilidades acumuladas.

– Apoio intersetorial envolvendo assistência social, educação, saúde e trabalho.

1.7. Remuneração Digna e Fiscalização Eficaz

– Revisão do piso da aprendizagem.

– Revisão e fiscalização das funções que as jovens aprendizes precisam executar, evitando que este grupo realize atividades de trabalhadores regulares.

– Fiscalização ativa das jornadas e condições de trabalho.

Conclusão

Este documento nasce das nossas vivências e da realidade que enfrentamos todos os dias. Nós, jovens mulheres negras, seguimos produzindo vida, cuidado, trabalho e futuro, mesmo quando o Estado não nos reconhece como prioridade e quando as políticas públicas não chegam aos nossos territórios. O que apresentamos aqui não é apenas uma proposta, mas a afirmação de que nossas vidas importam, que nenhum debate sobre cuidado, trabalho, educação ou bem viver pode existir sem a participação direta das jovens mulheres negras que movem este país, porque quando a mulher negra se movimenta, o mundo inteiro se movimenta junto.

Esperamos compromisso político, abertura de diálogo contínuo e a inclusão das nossas demandas nos planos e nas leis que definem o futuro do Brasil. Queremos ser reconhecidas não apenas como mão de obra, mas como sujeitas dignas de dignidade, sujeitas políticas, como juventude que pensa, cria, cuida e transforma!

Como escreveu Conceição Evaristo:

“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de viver.”

E viver, para nós, é lutar por cuidado, dignidade, justiça e futuro para todas as jovens mulheres negras do Brasil.

Referências:

https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/15656-mulheres-negras-sao-69-9-no-servico-domestico-ou-de-cuidados-no-brasil

https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/07/governo-federal-regulamenta-politica-nacional-de-cuidados

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10097.htm

https://www.generonumero.media/reportagens/jovens-negras-trabalho-ibge/

https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2022/07/Relatorio-MUDE-com-Elas-1.pdf

https://www.cut.org.br/noticias/trabalho-de-cuidado-no-brasil-uma-carga-desproporcional-para-as-mulheres-negras-8777

https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Nota_Informativa/Nota_Informativa_N_1.pdf

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