“Enquanto a gente ocupava, aquela era a melhor escola que a gente poderia ter”, a convicção veio de Laura Frare, uma menina de apenas 17 anos, mas que fala como quem já acumulou muitas experiências de luta em muito pouco tempo. A jovem, estudante do colégio Equipe, ocupou ao lado de amigos e companheiros a Escola Estadual Fernão Dias durante 55 dias, no final do ano passado. Ela conta que lá realizavam oficinas abertas de teatro, camisetaria, feminismo e rodas de conversa. Aulas de conteúdos tradicionais, como matemática e geografia, eram passados de maneira alternativa, diferente do antigo dia a dia da escola em que seus colegas estudavam.
A ocupação veio logo após o anúncio do fechamento de 94 escolas públicas estaduais por ordem do governador Geraldo Alckmin, no final de 2015. Segundo o projeto oficial, a medida seria tomada para aumentar o desempenho escolar dos estudantes, com a alteração do número de escolas que passariam a oferecer apenas o sistema de ciclo único de ensino, ou seja, ofereceriam só ensino fundamental ou ensino médio na unidade. “Eles diziam que tinham feito uma pesquisa que apontava que escolas de ciclo único tinham rendimento 10% maior do que as escolas de ciclo misto. Baseado nisso, disseram que se tratava de uma maneira de melhorar o ensino, mas os estudantes entenderam que era um corte de verbas disfarçado de medida pedagógica”, afirma Laura.
Rovena Rosa / Agência Brasil
As mobilizações estudantis cresceram por todo o estado de São Paulo entre novembro e dezembro de 2015, chegando a cerca de duzentas escolas ocupadas no interior e na capital. Em cada uma das escolas ocupadas, a programação era decidida coletivamente pelos estudantes, funcionários e professores que faziam parte do movimento. A organização escolar era feita por comissões de alimentação, atividades, limpeza, segurança, comunicação e outras, como conta Laura.
No começo, muitos estudantes foram acusados de depredação do patrimônio público pela direção ou por professores contrários ao movimento. Diante destas denúncias, os estudantes postavam em redes sociais fotos, vídeos e depoimentos de estudantes e professores que demonstravam o contrário: as escolas estavam mais limpas, organizadas e funcionais depois das ocupações. Na escola Fernão Dias, segundo Laura, antes das ocupações os estudantes não tinham acesso à sala de teatro, à biblioteca e ao piano, sob pena de advertência escolar. “Acabamos transformando esse espaço fechado e disciplinado que era a escola num espaço aberto, democrático, onde todo mundo poderia participar”, pontua.
Para Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a luta dos estudantes secundaristas em todo o país trouxe três demandas centrais: o Custo Aluno Qualidade (CAQ); a demanda por participação da comunidade nas decisões escolares, que é a demanda por gestão democrática; e, por fim, a formação de uma nova pedagogia: mais horizontal, significativa, tendo o ensino-aprendizado como temática central da vida escolar. “Estas três coisas são interdependentes. Sem gestão democrática, não tem como organizar coletivamente uma nova pedagogia, nos termos que os estudantes colocam. E sem condições de infraestrutura, não é possível fazer uma nova escola”.
Custo Aluno-Qualidade (CAQ)
Aprovada em 2014 pelo Senado Federal, a Lei 13.005 institui o Plano Nacional de Educação (PNE), que traz um longo programa de metas e estratégias para elevar a qualidade das escolas e do processo de ensino-aprendizagem no país. Segundo o professor Salomão Ximenes, da Universidade Federal do ABC, o PNE segue a lógica de ampliação de direitos básicos garantidos na Constituição Federal de 1988. “A Constituição segue o pressuposto típico dos Estados de inspiração de bem-estar social que é a ideia de progresso social e econômico, em que a medida que o país cresce e se desenvolve, vai implementando e ampliando direitos sociais para a população geral. E o Plano Nacional de Educação é a culminância disso no plano educacional, ou seja, um plano que conecta a ampliação de direitos básicos de cidadania a um compromisso de mais gastos em educação”.
Existem diversos mecanismos legais para proporcionar aos estados e municípios capacidade financeira de fornecer uma educação mínima de qualidade para os estudantes da rede pública de ensino. Um dos mecanismos existentes é o Fundo Nacional de Educação Básica, o Fundeb, que em 2015 apontou o gasto mínimo de R$ 2.545,31 por aluno, ou pouco mais de R$ 200 mensais, variando o valor de acordo com o ciclo escolar. No entanto, cálculos realizados em parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação indicam que seriam necessário valores superiores de investimento inicial, chegando a R$ 3.771,00 para o Ensino Médio em áreas urbanas. Pelo Fundeb, esse valor é de R$ 3.220,46 para a mesma modalidade.
Em 2005, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) produziu um relatório de custo mínimo em educação que indicava que 84% dos custos das melhores escolas públicas do país era revertido em forma de salário de funcionários e professores, sendo que o restante correspondia à manutenção predial e aquisição de materiais e equipamentos.
Veja os valores de referência do Custo Aluno-Qualidade inicial (CAQi):
A meta 20 do PNE, que trata do financiamento da educação, estabelece o Custo Aluno Qualidade inicial (CAQi) dando ênfase aos insumos oferecidos pela União e pelos entes federados para a implementação das metas em até dois anos após a aprovação no Congresso Nacional. Ou seja, o prazo para estudos de implementação do PNE termina em 25 de junho deste ano. No entanto, o PNE falha ao não indicar com precisão de onde os recursos serão repassados ao Fundeb ou outros fundos de colaboração entre estados e municípios para a realização do mínimo de qualidade em educação escolar, segundo especialistas. A opção política da meta 20 foi estabelecer que as condições materiais para o desenvolvimento dos processos de ensino-aprendizagem sejam avaliadas a partir da estrutura e funcionamento das escolas; do recurso humano disponível, como professores e profissionais não-docentes; estabelecimento de gestão democrática e condições de acesso e permanência escolar.
Com a aprovação do Plano Nacional de Educação, todos os Estados da União também devem implementar seus próprios planos de educação, inspirados no PNE. Hoje, 25 Estados já tem seus respectivos planos sancionados e apenas um permanece parado no poder legislativo. São Paulo foi o último Estado a aprovar um Plano Estadual de Educação (PEE), na última quarta-feira, dia 15 de junho. Com o plano parado desde o ano passado, o deputado Carlos Neder acredita que “só houve a votação desse plano a medida que a sociedade se mobilizou, particularmente os secundaristas com grande apoio do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), de tal forma que o governo Alckmin e a Assembleia se viram obrigados a mudar o cronograma e votar antecipadamente”.
Plano Estadual de Educação e as mobilizações estudantis: o que a gestão democrática nas escolas tem a ver com isso?
O Plano foi sancionado no último dia 8 de julho pelo governador Geraldo Alckmin, e estabelece vigência de dez anos a partir de sua publicação, com um prazo de dois anos para implementação após a votação e subordina a coordenação do PEE à Secretaria Estadual de Educação, ao Conselho Estadual de Educação e ao Fórum Estadual. Como o princípio da gestão democrática compõe o PNE aprovado em 2014 na forma da meta 19, esta também está presente no plano estadual.
Segundo o deputado Carlos Neder, “a manifestação dos secundaristas teve origem na denúncia do caráter autoritário do ensino e da gestão no Estado de São Paulo, mostrando que não havia nenhuma abertura para a participação dos alunos, nem dos trabalhadores da escola e menos ainda da comunidade na discussão de grades curriculares e na organização do processo de ensino-aprendizagem, nem na definição de prioridades de temas que são do processo educativo”.
Laura concorda: “a medida da reorganização escolar foi totalmente autoritária, não tinha nem passado pelos alunos, se eles queriam ou poderiam mudar de escola, nem foi discutido como isso seria feito isso. Havia vários problemas de logística que eles não tinham pensado”. Foi precisamente neste momento que as assembleias e ocupações começaram, como uma resposta ao desmonte das escolas. “Na verdade, essa é uma das questões principais das ocupações. Quando a gente estava lutando para não fechar a escola, não queria dizer que a gente gostava da escola como ela estava antes ou que ela era boa. Muito pelo contrário. Era uma questão de impedir que ela ficasse ainda mais precarizada”, afirma.
A resposta do Estado veio amarga, mas rotineira: Polícia Militar e ordem de reintegração de posse. Laura conta que quando a polícia chegou, os estudantes se reuniram e decidiram continuar o movimento “porque a gente sabia que já não tinha mais diálogo com o Estado, não tinha mais jeito”. Segundo a estudante, a PM chegou logo em seguida, e, nos primeiros quatro dias, o Fernão Dias ficou cercado. “Eles fecharam os acessos à quadra da escola, cercaram com 100 policiais e só saia quem desse dados pessoais: nome, RG e endereço, estivesse acompanhado dos pais ou do Conselho Tutelar. Também não era permitido que ninguém entrasse”.
Rovena Rosa / Agência Brasil
“A medida em que houve repressão à manifestação desses estudantes, eles acabaram recorrendo a formas de organização e de luta pouco usuais como é o caso das ocupações, feito primeiro em escolas, depois em escolas técnicas e que culminou na ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp)”, defende Carlos Neder. Para ele, é necessário mudar a Constituição do Estado, criando uma emenda que coloca a gestão democrática do ensino como peça-chave para a educação em São Paulo. “É preciso observar que não basta ter apenas esse princípio no Plano Estadual de Ensino, é necessário introduzir esse princípio como algo permanente. (…) Se não especificarmos essa gestão democrática nas escolas, democratizando a relação entre gestores, trabalhadores, estudantes, professores e funcionários, isso pode até estar escrito na Constituição e em leis complementares, mas não muda a prática cotidiana das escolas”, afirma.
Salomão Ximenes, por sua vez, acredita que a questão não é só política, mas fundamentalmente orçamentária. “Um viés pouco valorizado é a condição estrutural das escolas. Parece que a gestão democrática é uma questão só de boa vontade e não é bem por aí. É um conjunto de condições que precisam ser garantidas”. Dentro desta lógica, se pelo menos ⅓ da jornada remunerada de trabalho dos professores não for dedicada a atividades fora da sala de aula, como participação em reuniões, relacionamento com pais e comunidade escolar ou mesmo envolvimento em gestão escolar, a gestão democrática não se concretiza. “O Plano Nacional traz um argumento central para isso, que é o Custo Aluno de Qualidade. O Plano Estadual de São Paulo, por outro lado, é preocupante. A meta 20 dele demonstra uma preguiça intelectual que assombra, porque simplesmente reproduziu a meta 20 do PNE sem especificar qual a responsabilidade do Estado nisso, isso é um problema”, pontua. Para o professor, não há um compromisso objetivo do Estado de São Paulo em ampliar os gastos em educação.
Mas se o Plano Estadual não estabelece de onde virão os recursos, de onde eles podem vir?
Para Daniel Cara, o PEE de São Paulo está muito aquém do que poderia ter sido feito. “Uma das alternativas possíveis para a destinação de recursos do Estado para o cumprimento da ementa de gestão democrática é a liquidação patrimonial de herança vacante (mecanismo no qual a herança de uma determinada pessoa não foi reivindicada por ninguém e a posse desses patrimônios passa a ser do Estado)”.
Daniel reforça que só existe educação se houver gestão democrática. “A gestão democrática é fundamental para o envolvimento dos estudantes e professores no processo de ensino-aprendizagem”. Além disso, fazer valer este princípio é também fazer valer artigos da Constituição Federal.
Na tese do Ministério Público Federal defendida pela promotora de Santo André Maria Izabel Sampaio Castro, o artigo primeiro da Constituição defende que todo poder emana do povo e, portanto, fundamenta-se no exercício da cidadania e na descentralização da administração pública. O promotor João Paulo Faustinoni e Silva, do Ministério Público de São Paulo, defende que a gestão democrática facilita o exercício da democracia engajada no ambiente escolar. “Se existe democracia, existe espaço para a diversidade racial e sexual e, ao fortalecer o espaço democrático na escola, todas essas questões serão colocadas e discutidas pela comunidade. Neste sentido, a democracia engajada começa a fazer parte do cotidiano das escolas”, afirma.
Veja vídeo sobre a ocupação da Fernão Dias.
Os estudantes secundaristas de São Paulo já se espalharam pelo Brasil. E não apenas no sentido físico – como vai se efetivar a partir da Caravana Secundarista que começa no dia 25 de junho, mas se espalhou pelo seu espírito de mudança. As ocupações seguiram em 2016 em Estados como Goiás, Rio Grande do Sul, Ceará e Rio de Janeiro. A vontade de transformação e garantia de direitos ultrapassou os episódios de repressão paulista e está relacionada a um novo projeto de escola pública.
“A mobilização dos estudantes foi em defesa de uma concepção de escola pública democrática e plural. Ou seja, o que os estudantes nas ocupações mostraram foi o profundo afastamento entre uma cultura política e de relação interpessoal que a juventude tem presenciado de maneira mais horizontal, mais rápida e direta da lógica de escolas quase pré-modernas, baseada em ideias de controle e centralização, na qual os diretores são gestores centrais das escolas. Os estudantes mostram uma outra possibilidade de gestão da escola quando eles ocupam aquele espaço, promovem atividades, fazem a limpeza, reformas pequenas, etc.”, afirma Salomão.
Como se organizavam em comissões autônomas e interdependentes, as ocupações eram geridas diretamente pelos estudantes, contando com parcos recursos estruturais das escolas, doações e vendas de pequenos produtos. O desafio foi bem brande, mas Laura lembra que seus companheiros de luta saíram transformados da experiência. “A gente sempre fala que o período das ocupações foi o momento que a gente mais aprendeu na nossa vida dentro da escola, foi quando a gente aprendeu a ter autonomia, a pensar, a tomar decisões sozinhos – coisa que ninguém nunca ensinou”.
Inquérito Civil Público
Diante dos episódios de repressão policial, o Grupo de Educação do Ministério Público de São Paulo (Geduc) abriu no começo deste ano um Inquérito Civil contra o Estado, a fim de apurar excessos e analisar quais as ferramentas de diálogo existentes entre comunidade escolar e poder público. “Percebemos que tanto nos movimentos do final do ano passado, de novembro e dezembro de 2015 nas escolas estaduais, e nos movimentos de ocupação das escolas técnicas do Centro Paula Souza em 2016, existiam, além das demandas específicas dos grupos, como barrar a reorganização escolar e a questão da falta de merenda, a reivindicação por uma maior participação na vida escolar. Percebemos que havia uma obstrução das ferramentas de participação democrática nas escolas e por isso, o Inquérito Civil foi aberto, para investigar o estado atual dessas ferramentas”, afirma o promotor João Paulo Faustinoni e Silva.
Só no Geduc Capital existem mais de 500 processos contra a reorganização escolar, exigindo mais mecanismos de participação popular na vida das escolas. Estes processos não passaram por nenhuma instância escolar antes de chegar ao MP, segundo o promotor. O que levantou dúvidas sobre os métodos existentes nas escolas da rede pública.
O Ministério Público também está preocupado com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 143, apresentada pelo presidente interino Michel Temer, que propõe a desvinculação de receitas da União a fim de manter um teto de gastos públicos, o que afetaria os números atuais destinados à educação e saúde, por exemplo.
“O artigo 211 da Constituição diz respeito ao regime de colaboração entre os entes federados no ensino público. Por isso, enxergamos com preocupação a PEC 143. Temos observado essa questão do investimento público em educação com bastante atenção, mas como essa é uma questão de âmbito nacional, estamos nos articulando com o Ministério Público Federal e de outros Estados para avaliar impactos e pensar em medidas que podem ser adotadas para impedir essa redução nos investimentos em educação”, afirma.
Daniel Cara sintetizou a preocupação de todos os entrevistados a cerca da PEC 143: “a gestão pública no Brasil carece de criatividade para lidar com problemas de ordem financeira e prolongada. As políticas públicas são sempre pensadas a curto prazo”. Para Salomão, caso a PEC seja aprovada como foi proposta, desmonta o pressuposto que está colocado no Plano Nacional de Educação: o compromisso básico de gastos em educação previstos na Constituição de 1988 e torna a implementação do Plano, na prática, impossível. “Essa PEC vai significar uma revogação tácita do PNE”, afirma Salomão Ximenes.