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Julho das Pretas: Educadoras negras usam a cultura e a história negra para construir uma educação antirracista

Educar por meio presença, da fala e da escuta. No “Julho das Pretas”, o Estéticas das Periferias conversou com educadoras negras que assumem o compromisso de, por meio das suas aulas, projetos pedagógicos e inserção comunitária, desenvolver práticas educacionais antirracistas.

As experiências narradas pelas educadoras evidenciam o reconhecimento e alegria das alunas na identificação com o cabelo black, igual o da professora, passam pela necessidade de todos assumirem o compromisso para garantir o ensino da história e cultura negra – não só pessoas negras, até o poder que a formação antirracista tem de mudar a realidade de uma escola, de uma comunidade ou mesmo de um país.

Pitela Assunção
Paula Ferrira (cc: Pitela Assunção)

Paula Ferreira nos conta que para que ela pudesse se perceber como uma educadora negra, foi necessário, antes, se entender como uma mulher negra. Essa autocompreensão racial produziu outro sentido em sua prática. Paula é ativista da Rede de Ativista Pela Educação do Fundo Malala no Brasil e integrante do Comitê Pernambucano da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.

“Eu me considero uma educadora antirracista, mas eu comecei a me considerar assim, a partir do momento em que eu me reconheci enquanto mulher negra. Então eu passei a me reconhecer como mulher negra aos 27 anos, embora já atuasse como educadora popular antes disso”, explica.

O compromisso de marcar posição a partir desta identidade, já é uma maneira de transmitir um conteúdo de orgulho e valorização do ser negro, conta. “quando você se reconhece como educadora, você também colabora para que outras crianças, adolescentes e jovens se reconheçam enquanto negras e negros. A partir da sua prática, trazendo referência de pessoas negras, reis e rainhas, trazendo a história de resistência da população negra, não falando os escravos, as escravas, como se fosse a única história da população a ser falada, a ser compartilhada. então eu me vejo como educadora porque é isso” conclui Ferreira.

Eró Cunha (arquivo pessoal)
Eró Cunha (arquivo pessoal)

O olhar dos alunos sempre foi, para Eró Cunha, a coisa que mais lhe chamou atenção nos seus anos dentro das escolas. Ela explica que é indisfarçável o modo como as alunas e alunos negros a percebem enquanto mulher negra. “Em todos esses anos de trabalho, sem dúvida, umas das coisas mais marcantes é a forma como as alunas e alunos negros olham para mim. É um olhar de mais confiança, afinidade, cumplicidade, de compartilhamento das vivências que nós, pessoas negras e periféricas, invariavelmente compartilhamos”, destaca Cunha.

Eró é professora da Rede Pública Estadual de Ensino do Estado do Tocantins (Educação Básica). Ativista do Movimento Negro e Cultural de Imperatriz e região tocantina. Atualmente é coordenadora da CEIRI/UREI (Coordenação de Educação da Igualdade Racial de Imperatriz).

Por que uma educação antirracista?

A educação é antirracista quando ela reconhece que os marcadores raciais podem te aproximar ou te afastar do acesso e das oportunidades na vida em sociedade, explica Míghian Danae. Ela acredita que a educação antirracista contempla “o que a gente vem fazendo de melhor nas últimas décadas”.

Míghian Danae
Míghian Danae

“Uma educação antirracista contribui para que possamos viver melhor em sociedade, viver melhor juntos. A educação antirracista auxilia na construção de uma sociedade mais plural, mais diversas na forma de produzir cultura e ciência, inclusive mudando como nos relacionamos uns com os outros”, pontua Danae.

Mighian faz parte do Grupo de Pesquisa em Educação Afrocentrada – GRUPEAFRO, da UNILAB, do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas da UNILAB e integraa Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN).

A ideia de que a educação antirracista promove a diversidade também aparece no modo como Eró e Paula compreendem a questão. Para Eró, a máxima de que “ninguém é mais importante que ninguém”, apesar de ser muito repetida, não é valor concretamente reproduzido nas relações sociais, inclusive nas salas de aula.

“Ninguém é mais ou menos importante por causa de seu gênero, religião ou características físicas. A educação realmente antirracista compreende essa diferença, valoriza a importância da pluralidade, de que esse olhar para essas diferenças é que vai fortalecendo ainda mais as diversas existências”, avalia Eró.

Para Márcia Souza, a educação antirracista é uma luta constante para a construção de uma sociedade livre de qualquer falta de respeito, preconceito ou intolerância. “Acredito muito que o caminho para uma infância sem difusão de preconceitos e ou intolerância deve partir também de nós que somos formadores de opiniões, devemos garantir que as nossas crianças socializem com práticas de respeito, tolerância, autoestima e acima de tudo valorizar a sua identidade, a sua origem e a sua cultura”, ressalta.

Márcia Souza
Márcia Souza

Márcia tem experiência com turmas de educação infantil, ensino fundamental, médio e Educação de Jovens e Adultos. Atua como Gestora Municipal da Educação Infantil na secretaria de educação do município de Alcântara, função que ocupa desde 2017.

Arte e cultura

Um ponto em comum presente nas falas das professoras é a importância de fortalecer nos estudantes o orgulho de sua raça e história do seu povo. Para essas profissionais, a discussão da cultura e da arte produzida pela população negra cumpre uma função essencial neste processo.

Nesse sentido, Márcia aponta que a construção de uma nova identidade racial passa pelo ensino dessas habilidades. “O ensino de arte e da cultura não só pode, como deve sim fazer parte do currículo escolar. A arte proporciona o aprender sobre as contribuições artísticas e culturais de um povo, pois a história de um povo é o ponto de partida do processo de construção de sua identidade. Vale ressaltar que é direito de todos nós termos conhecimento dessas contribuições e a arte tem um papel importante para a construção de uma educação antirracista”,enfatiza. .

Eró avalia que se o ensino da arte em geral já é desvalorizado e visto como algo sem muita utilidade prática, o ensino da arte e da cultura negra, devido ao preconceito, é ainda mais desvalorizado. “A arte é fundamental nas nossas relações como seres humanos. Quando se trata da arte negra brasileira, ela é ainda muito mais invisibilizada, ela não é reconhecida como algo importante. A gente compreende que esse apagamento é mais uma forma, mais um mecanismo desse poder de reprodução e manutenção das desigualdades”, crítica.

Para ela, o ensino de diferentes linguagens artísticas tem um importante papel de valorizar o passado e garantir um melhor futuro para a população negra. “A gente consegue enxergar a importância da arte negra para que possamos conhecer a nossa história, saber a nossa origem, fortalecer a nossa memória e a nossa relação de subjetividade. Precisamos fazer um trabalho voltado para uma arte que seja inclusiva, voltado para essa cultura antirracista”, pontua Eró.

Paula concorda com Eró ao denunciar que, na montagem dos programas e currículos escolares, as contribuições artísticas e culturais da população negra são colocadas de lado e isso acontece porque a escola, como extensão da sociedade, acaba reproduzindo práticas discriminatórias em relação a tudo que remete à população negra. Paula afirma que é preciso garantir o ensino da cultura negra, mas esse ensino deve ser libertador, e não algo que reproduza preconceitos.

“A cultura e arte devem ser tópico nas salas de aula, mas de um modo que as pessoas negras se reconheçam, se vejam nessa relação também, de pertencimento de uma história e de uma cultura que não é contada apenas do ponto negativo. Temos grandes e importantes referências da dança, da arte, da cultura, da religião, enfim, de tantas coisas que a população negra continua contribuindo com a história do Brasil”, observa. “A gente não pode continuar perdendo a oportunidade de ensinar sobre a arte e cultura negra de uma forma com que as meninas e os meninos negros se reconheçam”, conclui.

Julho das Pretas

Quanto ao Julho das Pretas, que tem seu auge no 25 de julho, quando se comemora o Dia de Tereza de Benguela, líder que comandou o quilombo de Quariterê, no século 18, as educadoras pontuam que é simbólico o crescimento da importância desta data. Elas celebram que as organizações das mulheres negras têm conseguido pautar bandeiras políticas e mensagens de luta importantes.

Para Eró, a data representa um “movimento de ruptura”, uma vez que sinaliza a organização de mulheres negra que busca romper e dar um basta ao ciclo de violências simbólicas e físicas “O Julho das Pretas é uma tentativa mesmo de romper com essas violências diversas contra a mulher, em especial contra a mulher negra. Nós, mulheres negras, estamos lutando por reparação histórica para a nossa população lutando por nosso direito de viver, pelo nosso direito de termos voz, sermos ouvidas”, destaca Cunha.

Mighian avalia que todos os marcos e ações políticas que denunciem o racismo e proponham a construção de uma sociedade são importantes e necessários, porém acrescenta que o Julho das Pretas tem um “sabor especial” porque evidencia a trajetória e a luta das mulheres negras.

“A importância do Julho das Pretas é colocar no centro e valorizar as mulheres negras que foram responsáveis por diveras conquistas para o povo negro, é um momento de celebrar essas mulheres e ressaltar a importância de continuar os caminhos que elas trilharam”, afirma a pesquisadora.

A valorização das figuras históricas de mulheres negras também conduz a resposta de Paula. Para ela, a data é momento de reconhecer a contribuição de mulheres pretas que se tornaram referência da luta antirracista.

“A data do 25 de julho é uma data muito significativa para as mulheres negras. Este é um momento de olhar e refletir sobre esse lugar da mulher negra, que ainda é um lugar inferiorizado. A nossa luta é por superar essa sociedade estruturalmente racista. Por isso é importante valorizar e reconhecer as mulheres que estão fazendo o enfrentamento a tudo isso, que estão no campo da intelectualidade, da arte, nas salas de aulas construindo o enfrentamento ao racismo” diz a educadora.

Por fim, Márcia comemora a data porque ela representa o empoderamento das mulheres negras, que há tanto tempo lutam para superar o racismo e o preconceito. “O Julho das Pretas que é voltado para o fortalecimento de ações das mulheres negras nas diversas esferas da sociedade, tem um grande significado pra mim enquanto professora preta e empoderada que luta por esse empoderamento desde cedo”, conclui.

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