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Mayara Amaral e a rebeldia de fazer arte sobre e para quem compartilha sua identidade

No #JulhoDasPretas, a Artista do mês da Ação Educativa é Mayara Amaral, artista plástica da Zona leste de São Paulo que transita com liberdade entre obras figurativas e abstratas da mesma forma em que convive entre seus pincéis e o trabalho de trancista. Saiba como o desenho e a pintura surgiram nas suas aulas de moda e a ajudaram a levar uma arte que fala sobre as pessoas da periferia para dentro de suas casas. 

Desenvolta e comunicativa, Mayara conta a trajetória da jovem que redirecionou sua vida para as artes antes mesmo de escolher a linguagem com que se expressaria, e como o nascimento de sua filha deu impulso decisivo para a sua carreira. Nesta edição, Mayara estreia uma nova sessão em nosso site. Enquanto não podemos conferir seus trabalhos presencialmente no nosso predinho, inauguramos neste dia 25, Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha nossa #Galeria De Exposição Virtual.

A arte que foi voz antes de ser traço

Tirando as experiências escolares, meu primeiro contato com arte foi com dez anos. Eu moro desde pequena no Vila Mara, na Zona Leste, um bairro entre São Miguel Paulista e Itaim Paulista. Para que eu não ficasse na rua o dia inteiro, minha mãe me colocava para participar de qualquer atividade gratuita que ela encontrasse, e naquele tempo tinha bastantes políticas de fomento. 

Uma delas foi o Clube Escola Curuçá, onde fiz várias atividades, entre elas um curso de pintura e modelagem com argila, uma coisa que a gente não tinha acesso aqui na periferia. Era ótimo, as crianças eram iguais a mim, vinham da mesma região, as atividades preenchiam o período após a escola. Era um aprendizado mais leve, porque os professores eram mais jovens, falavam a nossa língua, e fazíamos tudo de forma recreativa, mesmo.

Mas eu ainda era muito nova, e eu me expressava com a arte de outra forma. Não que eu desse trabalho na escola, era uma criança bem nerd, mas assim que acabava as minhas tarefas, queria ficar conversando e fazendo piadas, pro azar dos coleguinhas que não tivessem terminado. Comunicativa, o meu negócio era o teatro, cheguei a escrever, dirigir e até produzir o figurino de uma peça na escola. E também gostava muito de música, nasci no terreiro, e na adolescência eu cantei na igreja, naqueles corais gospel de negrão, sabe?

O meu caminho artístico não era o da pintura. Eu aprendi a desenhar de verdade depois do ensino médio, quando eu consegui uma bolsa em um curso técnico no Senac para trabalhar com moda. Minha vontade era atuar na produção, visual merchandising, ambientação, uma área que até hoje eu tenho interesse. Acontece que durante o curso eu fui percebendo que a gente trabalhava mais com tendências e comportamento do que necessariamente a experimentação artística, que era importante pra mim. 

Necessidade de experimentação

Aí tive esse baque, né? Quanto mais eu conhecia o mundo da moda, mais ele me parecia fútil. E essa que é a real, por mais que eu goste, que eu ache um continho de fadas, é meio massante ser uma pessoa preta e periférica nesse mundo que não te abraça, a não ser num contexto de prestar serviços. Tanto que eu nunca entrei num São Paulo Fashion Week. Hoje até é um pouco mais acolhedor, mas pensa como era na virada de 2010? 

Percebi que queria fazer arte, mesmo, nas aulas de teoria das cores com a professora Ana Mazzei. Ela própria é uma artista reconhecida, me abriu a visão sobre cores, composição e outras percepções sobre harmonia. Também foi ela quem me estimulou e me fez pensar não mais como uma estudante, mas uma profissional que poderia investir na minha capacidade de produzir arte. Ela dizia, com carinho, que eu poderia ser do teatro, do cinema, do que eu quisesse, mas que eu era “espalhafatosa” demais pra não ser artista.

Quando acabei o curso técnico, estava segura da minha vontade de ser artista e fui fazer licenciatura em artes visuais. É engraçado que quem gostava de desenhar em casa era meu irmão, que tinha uma pastinha cheia dos pokémons. Eu mesma, fui aprender só durante o curso de moda, um apego que aparece nos figurinos dos meus retratos até hoje, assim como a influência do meu trabalho com as os dreads e tranças. 

Neste momento, eu ainda não tinha acesso a telas de pintura, desenhava apenas em folhas A4, A3, com exceção da minha primeira telinha, em que fiz uma paisagem seca. A licenciatura me permitiria trabalhar como artista ou com arte-educação, mas esses planos precisaram esperar um pouquinho. Descobri quase na minha formatura que estava esperando minha Naomi, hoje com quase 4 anos.

Recalculando a rota

Entre as amigas da periferia, a gravidez não era um tema novo, fui aos 24 anos uma das mães mais tardias do grupo. Já entre a turma da faculdade, fui a primeira, o que me fez acelerar alguns processos. Não sei se daria conta de me formar se Naomi tivesse chegado antes, eu não me via como a pessoa potente que sou hoje. Minha filha me fez amadurecer muito e me trouxe força para acreditar na minha carreira.

Assim que me formei, passei a trabalhar como arte-educadora e cheguei a dar aulas para ensino fundamental e para o ensino médio, que eu gostei mais. As crianças tocavam o terror de verdade, e já com os adolescentes você já pode falar na gíria e conversar com um pessoal que às vezes tá até vindo do trabalho, o que fazia a vivência em sala de aula muito legal. Eu gostaria de ter continuado, só que não há muito estímulo para continuar na sala de aula, e o menor dos problemas são os alunos. As políticas de educação são desanimadoras e a sala de professores me deixava horrorizada, eu preferia conversar com quem eu me identificava, que era o pessoal da limpeza e da biblioteca.

Um dia eu cansei e decidi deixar o magistério e me dedicar mais à pintura. Investi nos materiais e comecei as minhas experimentações com as tintas, em casa mesmo. Eu só não sabia como entrar no mercado, entende? Eu sabia que tinha que fazer dar certo pra mim, mas o caminho não é suave, tem muita competição interna, a gente que não tá no centro é menos visto e não participa das bolhinhas. Se ficasse esperando me chamarem, não ia trabalhar nunca. Para dar meu jeito, fui aprendendo muita coisa no YouTube, vendo uns documentários que não tive tempo de ver na faculdade por trabalhar e morar longe, mas a ideia de viver de arte ainda era distante. 

Glamour não enche barriga

Na real, por causa do elitismo da área, até hoje tenho dias em que é difícil de eu me identificar como artista, por mais que haja procura pelas minhas obras e toda semana eu consiga vender pelo menos uma. Eu sei que sou capaz de produzir arte, mas para viver disso é preciso saber administrar, negociar o preço na obra, que é mais o trabalho de agente ou galerista. Quando vendi meu primeiro quadro para fora do estado, eu nunca tinha enviado nada pelos Correios. O quadro foi para o Rio de Janeiro por uns duzentos contos, e pra mim já foi o auge, era o que eu ganhava fazendo cabelos um dia inteiro. 

E quando a gente resolve se virar nessa área, precisa entender que o rolê não é pomposo, não dá pra ficar com uma boininha francesa e dizer “ah, eu só vou pintar”. O trabalho é igual ao do vendedor da Avon, precisa lidar com público do mesmo jeito que o vendedor de coxinha ali da estação de metrô. Só agora, uns bons anos depois de formada, que comecei a me aprofundar e entender o mercado, a logística do negócio. 

Arte para as casas da periferia

Eu vinha trabalhando com cabelos durante todo o ano de 2020, mas a pandemia se agravou no começo do ano e eu estava me sentindo muito exposta por algumas clientes que são o terror da OMS. Para continuar me cuidando e produzindo, comecei a organizar um saldão: selecionei dez obras originais e coloquei à venda nas redes por 24h com um bom desconto. Vendi metade delas na primeira vez, oito na segunda, e as vendas seguiram acontecendo toda vez que eu repetia a estratégia, ao ponto de recentemente eu ter conseguido esgotar todas as dez obras selecionadas em apenas três horas. 

Com essa estratégia, sinto que consegui atrair mais pessoas pretas e periféricas, um público que não é elitizado. Como as peças do saldão são feitas sobre papel, elas estão chegando em um pessoal que não conseguiria comprar um trabalho meu de outra forma. É gratificante, porque é raro ver um quadro nas casas por aqui, não temos essa cultura de consumo de arte. 

É muito difícil pensar em um objeto decorativo se você paga aluguel e o saco de arroz tá saindo por vinte reais. Se essas pessoas não podem ter um trabalho meu precificado dentro dos padrões do mundo da arte, eu quero fazer uma alternativa para elas, entendeu? Ao mesmo tempo que a gente não pode desvalorizar nosso trabalho, a gente tem que decidir que tipo de artista quer ser. Será que colar nos coquetéis e fazer aquela “artesona” não é uma coisa cansada, já? 

Ser artista no nosso convívio

Tem uma frase muito boa sobre isso do D2, “celebridade artista, é artista que não faz arte”. Não quero fazer conteúdo só pra ganhar likes e condicionar meu trabalho a isso. As pessoas têm essa pira de só reconhecer artistas famosos, e se você não está no circuito de galerias, com milhares de seguidores e envolvida com projetos que movem um monte de dinheiro, você mesma vai ter dificuldade de desenvolver uma autoestima profissional para saber quanto vale o seu trabalho.

Hoje eu percebo que faço parte de uma outra geração de artistas, que moram na periferia e retratam mulheres negras, corpos livres de vários tamanhos, corpos trans. A última série que publiquei no Instagram é sobre sexualidade, um tema que te deixa marcada, mulher falando sobre sexo é um tabu ainda. Por outro lado, esse é um assunto que gera bastante engajamento, eu poderia ficar produzindo só isso, mas a luta do meu trabalho é para tocar as pessoas de verdade.

É essa a minha vontade com o projeto do #JulhoDasPretas da Ação Educativa. Eu pensei em destacar o aspecto geracional do afrofuturismo, com mulheres de idades diferentes, para demonstrar a relação entre passado e futuro, entender os mecanismos da ancestralidade para aplicá-los à nossa vida. Não estou falando necessariamente de carros voadores ou óculos 3D, mas sobre como vamos usar a nossa oralidade, da nossa cultura, de riqueza ancestral no futuro, no qual a gente se imagina no futuro, bem, vivas e prósperas.

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