por Helisa Ignácio
O ano de 2023 marca os 20 anos da sanção da Lei 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica do país. A fim de celebrar este importante marco na luta dos movimentos negros por direitos e no enfrentamento ao racismo, a Ação Educativa realizou o Seminário 10.639 – 20 Anos por uma Educação Antirracista e Emancipatória.
Realizado no âmbito do Projeto Seta, o evento reuniu pesquisadores como Nilma Lino Gomes e Kabengele Munanga, e profissionais da educação como Geisa Giraldez e Elly Bayó, para compartilhar perspectivas, caminhos e desafios relacionados à história da Lei 10.639.
Com Magi de Freitas e Ednéia Gonçalves, respectivas coordenadora executiva e coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa, e Jaqueline Lima Santos, representante da Action-Aid, organização gestora do Projeto Seta, a abertura trouxe um resgate histórico da atuação de organizações e movimentos sociais que culminaram não apenas na formulação da lei, mas também na produção de materiais didáticos, formações e pesquisas para sua implementação no Brasil.
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O seminário apresentou duas mesas de debate sobre memórias e estratégias de implementação da Lei 10.639/03 e marcou o lançamento do livro “NEGRITUDES: Diálogos com o Pensamento de Kabengele Munanga”.
O começo, o meio e o começo
Na primeira mesa, Memórias, Perspectivas e Caminhos da Lei 10.639/03, mediada por Ana Lúcia Silva Souza, docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e diretora da Ação Educativa, as palestrantes Ednéia Gonçalves e Nilma Lino Gomes trouxeram memórias ligadas à implementação da lei, as transformações ocorridas desde então, e os caminhos para a promoção da equidade racial e cultural no sistema educacional brasileiro.
Nilma Lino Gomes, intelectual, pedagoga, escritora, e ex-ministra da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), reflete sobre como as desigualdades regionais do país têm tido implicações na implementação da 10.639; assim como o racismo que, em seu caráter estrutural e estruturante, está profundamente relacionado à implementação irregular da legislação.
Nilma também chamou atenção para o que resultou desse processo de décadas, a partir de dimensões política, pedagógica, estética e ética. Em relação à política, entra a noção de que a responsabilidade pela superação do racismo é coletiva e também das instituições, não apenas das famílias negras; de que raça e poder são indissociáveis; e de que é necessário indagar o processos avaliativos, sejam avaliações institucionais, ou avaliações com estudantes.
A dimensão ética, de acordo com a pensadora, reflete práticas cotidianas e discute identidade étnico-racial como eixos para a construção de uma educação emancipatória. E isso “envolve reconhecer, respeitar e saber como lidar, principalmente, com identidades muito fragmentadas que foram forjadas pelo racismo. Como lidar com isso? Como a professora e o professor da educação básica constroem competências para lidar com essas dimensões?”, indaga.
Ainda neste ponto, Nilma chama a atenção para a ideia de injustiça cognitiva e como a população negra é afetada por ela nos processos formais de educação. Por fim, provoca com um aprendizado que teve com Amaury Ferreira, professor da PUC Minas. “Quando nós, professores e professoras, praticamos, seja racismo, machismo, LGBTQA+fobia, no processo educacional formal, vamos na contramão do próprio princípio ético do nosso ofício. O ofício da professora e do professor, da educadora e do educador, é ofício da acolhida da diferença. E se não conseguimos acolher a diferença, nós estamos ferindo algo que é o princípio ético da docência. A docência não precisaria de um código de ética, porque ela é a morada da ética”.
A corporeidade diz respeito à dimensão estética e Nilma rememora que, há 20 anos, o contexto era completamente diferente. Esse modo de se apresentar para o mundo vem de um espaço “formado pelas discussões, pelas legislações, pelas normativas, pelas literaturas, pelas poesias, pelas leituras da história, pelas produções que foram saindo. Tem uma outra dimensão que eu acho que é muito forte, que é o discurso afirmativo dessa corporeidade, porque eu cresci tendo um discurso negativo. Hoje, você tem um discurso afirmativo sobre essa corporeidade que se expande – abocanhada pelo mercado e devolvida como mercadoria para um monte de gente consumir – e isso não acontecia tempos atrás” afirma Nilma Lino.
Em uma articulação entre o ético, o estético e o político está a memória. “Há uma grande quantidade de trabalhos com as memórias e as narrativas encontrados dentro do campo escolar e da pesquisa educacional. Isso traz uma outra ética e uma outra estética para a própria escola”.
Para finalizar, Nilma Lino Gomes rememora um legado ancestral. “Há uma estética e uma ética que os nossos antepassados nos legaram e que, hoje, a gente consegue compreendê-la melhor. O racismo é um fenômeno muito perverso, mas tem algo que a gente está descobrindo hoje, ou melhor, redescobrindo, que tem a ver com os nossos antepassados e com ensinamentos que vêm principalmente de mulheres mais velhas negras que é a ética do amor”.
As provocações de Nilma reverberam e Ana Lúcia resgata a trajetória acadêmica de pensadoras e pensadores negros da educação no país e a importância de pessoas negras se tornarem referência de outras pessoas negras, como uma grande família estendida que não sabe tudo, mas sabe muita coisa. “Nós, negros, negras e negres, precisamos nos preparar para gestão. Ocupar os lugares de gestão, segurar as canetas e assinar projetos e editais. Nós precisamos ocupar esses espaços com os nossos corpos e isso tem uma relação fundamental com a dimensão política”, afirma a diretora da Ação Educativa.
Sobre o papel da escola e do sistema educacional brasileiro na reeducação das relações étnico-raciais, Ednéia Gonçalves reforça que há a manutenção do privilégio e a não resolução da desigualdade. “O que a gente tem disputado, hoje, é qualidade de educação e a memória. Isso tem muito a ver com a capacidade que a escola tem de construir memórias positivas e sem traumas para as crianças pretas e para a juventude preta. Até o momento, ela tem produzido traumas e traumas muito específicos diariamente e em todas as dimensões. O que a gente enxerga e o que a gente não enxerga, e o que a gente guarda como memória da nossa experiência escolar? Que transformações a gente quer construir? Isso extrapola para outros ambientes, porque a gente não sai da escola e deixa de ser preto”.
Estratégias do chão da escola
A segunda mesa do seminário trouxe como tema Experiências e Práticas Educativas na Implementação da Lei 10.639/03 e contou com a participação das professoras Geisa das Neves Giraldez e Elly Bayó, e do pensador Kabengele Munanga. Com mediação de Silvane Lima, assessora da Ação Educativa, as educadoras compartilharam suas trajetórias, as estratégias pedagógicas que desenvolveram, os desafios que enfrentaram e os impactos positivos de sua atuação pela implementação da legislação em sala de aula.
“É um pouco dessa história que tem sido feita nas unidades educacionais por aquelas pessoas que têm utilizado a legislação como instrumento. Se ficarmos apenas no texto da lei, não teremos avanço nenhum. Porém, são essas pessoas que estão lá nas unidades educacionais no cotidiano da escola que utilizam desse instrumento para, de fato, fazer a transformação na prática”, abre a discussão Silvane.
O intelectual e ativista das políticas de ação afirmativa, Munanga, faz um resgate sobre o processo de escravização e de apagamento histórico e identitário dos povos africanos que foram trazidos para o Brasil. Neste sentido, Kabengele indica que os caminhos possíveis para erradicar o racismo perpassam por uma utopia, por uma revolução para construir um outro modelo de sociedade. Legislação eficiente, educação e formação permanente de educadoras/es, e políticas afirmativas, no entanto, são as três possibilidades de enfrentamento ao racismo. “As leis só mexem com os comportamentos que podemos observar e que podem ser punidos. No entanto, os preconceitos que são introjetados pela educação, as leis não mudam. Portanto, é por isso que precisamos de uma educação antirracista, que é uma educação pluricultural que respeita a cultura dos povos, dos povos que aqui se encontraram”, afirma o educador.
Partindo para exemplos de sala de aula, a professora da educação infantil do município do Rio de Janeiro, Geisa Giraldez é consciente das denúncias que devem ser feitas, porém, salienta que há muito a se anunciar sobre sua prática docente que propõe uma experiência negra positiva. Depois de ser questionada por uma criança sobre o porquê todas as pessoas que ela conhecia morrerem, Geisa criou o “Desenhema”, por meio do qual a educadora junto com estudantes faz um resgate da biografia de artistas negros com um painel, colagens e desenhos. Já com “Corpo de fora, corpo de dentro”, a ideia é trabalhar com perspectiva de diversidade dentro do grupo, e ao longo de pouco mais de um mês, as crianças se descrevem e se observam para fazer anotações. “Ao longo desses anos, eu me constituí e venho me constituindo, como a professora que eu gostaria de ter tido. O fato de eu ser a professora que gostaria de ter tido não significa que eu seja a professora que as crianças com quem trabalho queiram. Por isso que eu, além de ser professora, sou uma escutadora de crianças para ouvir também delas” compartilha.
Elly Baió concorda com Geisa e afirma que há muito a ser pronunciado. “Se eu denuncio que essas infâncias são silenciadas, que essas infâncias são fragmentadas. Eu preciso encontrar um espaço para pronunciar as potências também dessas infâncias. E aí nesse sentido que eu começo meu trabalho”.
A professora que também é gestora aponta que é necessário contar com o apoio de toda a comunidade em outros locais que não somente a sala de aula. Com projetos como Patota Adinkra, no qual as crianças participam da construção da intelectualidade negra, Elly compartilha uma experiência que extrapola os muros da escola e reforça a importância da comunidade escolar nos processos. “Na segunda reunião com as famílias, uma mãe, uma mulher negra, me chamou em um canto e falou: ‘Professora, eu nunca tinha aprendido sobre a nossa cultura. Eu estou aprendendo tudo. Agora com o Ryan’ [filho]. Eu não sabia nem o que falar para ela. Eu perdi a palavra. Eu só abracei e falei: ‘Vamos continuar, né?’.
20 anos depois, a lei saiu do papel?
A pesquisa “Lei 10.639/03 – A atuação das Secretarias Municipais de Educação no Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira” lançada recentemente e realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, identificou que apenas 29% dos municípios brasileiros realizam ações constantes para efetivação da legislação, tendo em comum estrutura administrativa, regulamentação local, dotação orçamentária e periodicidade nas ações para atender às Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-Raciais. Por outro lado, 53% dos municípios realizam ações e projetos de forma pouco estruturada ou em datas comemorativas apenas, como no dia 20 de novembro, e 18% não realizam nenhum tipo de ação.
Estes números, no entanto, não devem apagar as décadas de luta. Para Nilma Lino Gomes, afirmar que a lei não pegou é depor contra todo o trabalho realizado até aqui. “É necessário entender que há uma implementação extremamente irregular da lei. A implementação é desigual, e acompanha a desigualdade regional do nosso país. Sabemos também que essa irregularidade se deve também ao racismo. Ele é estrutural, ele é institucional, é epistêmico, etc, mas como fenômeno é um só. As formas de ele se manifestar são as mais variadas. Isso [a implementação desigual da lei] nos ajuda didaticamente e intelectualmente a compreendê-lo”, declara.
Segundo Jaqueline Lima Santos, da Action Aid, o Brasil é referência no que se refere a marcos legais de educação para as relações étnico-raciais. “Muitas pessoas no mundo que querem implementar, olham para o que a gente tem feito. Porém, somente o marco não é suficiente, precisamos do convencimento da sociedade de que esse tema é importante e de que não é uma coisa à parte, é parte de um todo. Esse tema precisa ser institucionalizado”.
Muito vem sendo realizado, muito vem sendo publicado. O caminho não começou a ser trilhado ontem, porém, ainda há muito a ser percorrido. É impossível tratar da Lei 10.639/03 sem citar Petronilha Gonçalves e Silva, professora doutora cujo parecer fundamentou a legislação que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. “Existem diferentes maneiras de ser pessoa. Nessas diferentes maneiras de ser, pessoas são construídas, no convívio, com pessoas que são diferentes. Então, quando nascemos, somos educados no seio de uma cultura. Talvez, tenhamos compreensões da vida ou das relações entre as pessoas que não são coincidentes, que são distintas, mas que podem se enriquecer no convívio. Então, o cerne da educação para as relações étnico-raciais é saber ser firme na sua raiz sem, entretanto, desprezar outras raízes. Mais do que isso, dialogar com outras para que se construa a sociedade que é comum para se fortalecer a construção da nação, que é de todos. Celebrar significa lembrar e lembrar para que a sociedade tenha sempre presente”.