Estudo apresentado em ação judicial revela que, mesmo com resolução sobre ações afirmativas, universidade pública mais prestigiada do país segue com menos de 4% de professores negros e estagna presença indígena
A Universidade de São Paulo (USP) mantém um corpo docente racialmente homogêneo, com baixa representatividade de pessoas negras e indígenas. É o que revela uma análise técnica apresentada pela Rede Liberdade, em parceria com a Ação Educativa, à 14ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, como parte da Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública do Estado. A ação cobra o cumprimento efetivo da Resolução nº 8434/2023, que instituiu diretrizes para a implementação de ações afirmativas nos concursos públicos da USP.
Segundo o estudo do analista de dados da Rede Liberdade, Alexandre Kakuhama, realizado a partir de dados públicos da própria universidade e do Diário Oficial do Estado, entre 2022 e 2025 a presença de docentes negros (pretos e pardos) passou de 2,64% para apenas 3,96%. No mesmo período, o número de professores brancos seguiu acima de 89%, uma razão de 34 docentes brancos para cada docente negro, segundo os dados de 2023. A presença indígena, por sua vez, permaneceu estagnada em números residuais: apenas quatro docentes em todo o corpo acadêmico.
A análise também indica que o crescimento recente no número de professores negros, embora estatisticamente relevante, é insuficiente para alterar a composição racial da universidade de forma significativa. Em 2025, por exemplo, o número de docentes pretos cresceu 63,6% em relação ao ano anterior. Ainda assim, o total de professores negros permaneceu abaixo de 4% do quadro. A projeção feita pela equipe técnica aponta que, se mantido esse ritmo, a USP levaria mais de 80 anos para alcançar uma representação proporcional à da população negra no estado de São Paulo.
Outro ponto de destaque do levantamento é a baixa presença de bancas de heteroidentificação nos concursos públicos da instituição. Em 67 processos analisados para professor doutor, apenas dois continham registros públicos de aplicação efetiva de mecanismos para verificar a autodeclaração racial. A ausência dessas comissões coloca em xeque a fiscalização sobre o cumprimento das políticas afirmativas e levanta dúvidas sobre a legitimidade dos processos seletivos.
A Rede Liberdade e a Ação Educativa também alertam que os dados disponibilizados pela USP apresentam limitações estruturais que dificultam o controle público sobre a eficácia das ações afirmativas. Os dados sociodemográficos são divulgados de forma agregada e não permitem o cruzamento de variáveis como raça, gênero, cargo ou modalidade de contratação. Em sua manifestação à Justiça, a organização aponta que a falta de transparência, somada à resistência institucional em aplicar medidas corretivas, perpetua o racismo estrutural na universidade.
A Ação Civil Pública (ACP) foi ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, sob responsabilidade do Núcleo Especializado de Promoção da Igualdade Racial (NUPIR), e tramita na 14ª Vara da Fazenda Pública da capital. A ação questiona a restrição imposta pela USP à Resolução nº 8434/2023, que criou cotas e bonificação para pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI), mas limitou sua aplicação apenas a concursos com editais publicados após a vigência da norma. A Defensoria sustenta que a medida viola princípios constitucionais e administrativos e pede que as políticas afirmativas sejam aplicadas também aos concursos que estavam em andamento, mas ainda não haviam realizado provas. A Ação Educativa participa da ACP como amicus curiae – ou seja, como entidade que pode fornecer informações e esclarecimentos no tema do processo – sendo representada pela Rede Liberdade.
Em manifestação recente, o órgão reforçou que a sub-representação de docentes negros e indígenas é comprovada por dados oficiais da própria universidade, e que a omissão da USP compromete as metas de diversidade estabelecidas pela própria resolução. Diante do impasse, a Defensoria pede a abertura de instrução processual, com produção de provas técnicas e realização de audiência de conciliação. Entre os pontos a serem esclarecidos estão: se a USP consultou organizações representativas antes de definir o marco temporal da resolução; quantos concursos efetivamente aplicaram as políticas afirmativas; e se houve prejuízo concreto à diversidade racial em razão da exclusão dos certames já em andamento.
A USP, por sua vez, pediu o julgamento antecipado do mérito e sustenta que a regra não pode retroagir para concursos com editais já publicados. O Ministério Público se manifestou nos autos pedindo o julgamento antecipado da lide, seguindo o pedido da USP.
Sobre a Rede Liberdade
A Rede Liberdade é uma articulação composta por advogadas, advogados e representantes de entidades da sociedade civil que atuam juridicamente em casos de violação de direitos e liberdades individuais. A iniciativa busca garantir proteção jurídica a defensores de direitos humanos, organizações da sociedade civil e indivíduos afetados por retrocessos constitucionais, além de utilizar os sistemas jurídicos brasileiros para combater desigualdades e promover justiça social. A rede atua com a convicção de que uma sociedade civil plural, ativa e vibrante é fundamental para que todas as pessoas possam exercer plenamente suas liberdades e potencialidades.
Sobre a Ação Educativa
Fundada em 1994, a Ação Educativa é uma associação civil sem fins lucrativos que atua nos campos da educação, da cultura e da juventude, na perspectiva dos direitos humanos. Para tanto, realiza atividades de formação e apoio a grupos de educadores, jovens e agentes culturais. Integra campanhas e outras ações coletivas que visam à realização desses direitos. Desenvolve pesquisas e metodologias participativas com foco na construção de políticas públicas sintonizadas com as necessidades e interesses da população. É sua missão a defesa de direitos educativos, culturais e da juventude, tendo em vista a promoção da democracia, da justiça social e da sustentabilidade socioambiental no Brasil.