ÀS REPRESENTAÇÕES DIPLOMÁTICAS DOS PAÍSES MEMBROS DA COMUNIDADE EUROPÉIA
28 DE MAIO DE 2025
A comunidade científica brasileira e internacional, organizações da sociedade civil e especialistas em governança ambiental vêm a público expressar sua profunda preocupação com o Projeto de Lei 2159/2021, atualmente em tramitação no Congresso Nacional do Brasil. Tal projeto desestrutura a política nacional de licenciamento ambiental ao flexibilizar extremamente e em muitos casos dispensar a avaliação de impactos socioambientais, priorizando as dispensas de licenciamento e o autolicenciamento irresponsável Também viabiliza a simplificação dos processos por pressão política, nos empreendimentos considerados “estratégicos”, mesmo quando de alto risco e impacto.
Amazônia, aquecimento global e mudanças climáticas
A aprovação desse projeto de lei representará um grave retrocesso, cujas consequências extrapolam o território brasileiro e colocam em risco direto o sistema climático e hidrológico amazônico, um dos maiores sumidouros de carbono do planeta. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alerta há anos para o risco de savanização da Amazônia, processo irreversível que pode ocorrer se o desmatamento ultrapassar de 20% a 25% da cobertura original. Em 2023 este bioma atingiu 18,2% de desmatamento e, ao invés de vermos esforços concentrados de todas as autoridades públicas brasileiras para regenerar e sustar definitivamente o desmatamento, observa-se o caminho oposto sendo trilhado. Com a aprovação da Lei Geral do Licenciamento, os danos indiretos do desmatamento oriundo de grandes obras na Amazônia poderão estar isentos de medidas de precaução ou preventivas, o que levará inexoravelmente ao rompimento do ponto de não retorno deste bioma, com consequências globais.
No território europeu da Guiana Francesa, o enfraquecimento da umidade amazônica já se manifesta em alterações nos padrões de chuva. A savanização ameaça reduzir drasticamente os volumes totais de precipitação, com riscos diretos de impacto sobre a biodiversidade local, as atividades agroextrativistas e a resiliência climática da região com graves consequências econômicas e em termos de migração forçada de populações.
A liberação do estoque de carbono advinda da savanização de até 70% do bioma amazônico poderá levar o planeta à ultrapassagem da meta de 2°C estabelecida no Acordo de Paris, a despeito dos melhores esforços internacionais. Tal processo ameaça acionar os demais pontos de inflexão (tipping points) do sistema climático, como o derretimento das calotas glaciares da Groenlândia e da Antártida Ocidental, o colapso da circulação termoalina do Atlântico (AMOC) e o desaparecimento da camada de gelo no Ártico, conduzindo o planeta aos piores cenários previstos pela ciência climática mais rigorosa.
É fundamental lembrar que o Brasil é o 5º maior emissor global de gases de efeito estufa, com emissões majoritariamente causadas pelo desmatamento e queimadas florestais — problemas que serão agravados por diversos dispositivos do PL 2159/2021. Ressalte-se que, com o aumento das emissões no curto prazo e o consequente risco de aceleração do aquecimento global e savanização amazônica, o abastecimento de água potável em diversas regiões da América do Sul será ameaçado. Também a agricultura brasileira, sua segurança alimentar e a exportação de alimentos, que é de interesse europeu, não serão viáveis sem a regulação hídrica garantida pela floresta. A destruição dos aquíferos e dos rios voadores, alimentados pela evapotranspiração amazônica, inviabilizará o modelo atual do agronegócio. Portanto, seus dividendos comerciais da iniciativa de aproximação entre Mercosul e União Europeia estão ameaçados.
Em poucas décadas, o efeito sistêmico desse processo iniciado na Amazônia brasileira poderá também impactar negativamente até mesmo as fontes de água da Europa — como as dos Alpes, Cárpatos, Pirineus e Cáucaso, com efeitos severos sobre sua agricultura e populações, independentemente de sua capacidade de adaptação climática local, pela miopia que desconsidera os impactos sistêmicos e transfronteiriços da desregulação ecológica e climática em curso.
Incompatibilidade com acordos internacionais
O PL 2159/2021 ameaça princípios e compromissos de diversos tratados internacionais. Ao restringir a participação social, técnica e científica no processo de licenciamento ambiental, o projeto fere, nominalmente suas contrapartes europeias em vias de tornarem-se signatárias do Acordo de Livre Comércio União Europeia – Mercosul, naquilo disposto no Artigo 3º, parágrafo 7, da Convenção de Aarhus sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Questões Ambientais, que estabelece que:
“Cada Parte promoverá a aplicação dos princípios deste Convênio em processos internacionais relativos a questões ambientais. A esse respeito, cada Parte deverá fomentar o reconhecimento do direito de acesso à informação, à participação do público na tomada de decisões e ao acesso à justiça em questões ambientais nos processos internacionais de decisão e na implementação de acordos internacionais relativos ao meio ambiente.”
O Brasil é signatário da contraparte latino-americana do Acordo de Aarhus, o Acordo de Escazú, contudo sua ratificação vem sendo obstaculizada pelo mesmo Congresso Nacional que pretende aprovar o PL 2159/2021.
Adicionalmente, o projeto de lei viola os artigos 6º, 7º e 8º da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que preveem a avaliação de impactos ambientais e a participação social; ignora o princípio da precaução estabelecido no Acordo de Paris (artigos 2º e 4º); compromete o dever de promover uma transição justa e inclusiva; e enfraquece os pilares da Agenda 2030 da ONU, especialmente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 13, 15 e 16.
O PL 2159/2021 colide frontalmente com compromissos firmados no âmbito do Acordo de Livre Comércio União Europeia-Mercosul, que contém um Pilar de Sustentabilidade exigindo o respeito a compromissos ambientais multilaterais, a proteção da biodiversidade, a implementação do Acordo de Paris e a observância do princípio da precaução. O projeto, em questão, viola esse pilar ao permitir o licenciamento automático ou a dispensa de licenças para atividades de alto impacto ambiental; a exclusão da análise de alternativas locacionais e tecnológicas; a limitação da consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas; a supressão de prazos e mecanismos que garantem transparência e accountability; e a classificação arbitrária e sigilosa de projetos como “estratégicos”, impedindo o acesso à justiça ambiental.
Neste sentido, é importante destacar que o PL 2159/2021 contraria obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais voltados ao combate à corrupção. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), por exemplo, estabelece em seu Artigo 5 a obrigação dos Estados de adotarem políticas públicas que promovam a participação da sociedade e fortaleçam a integridade e a transparência na administração pública. Já o Artigo 13 determina que os países assegurem o engajamento efetivo da sociedade civil e da mídia no combate à corrupção, garantindo o acesso à informação. A dispensa de licenciamento para diversos empreendimentos, a possibilidade de decisões administrativas secretas — como previsto na Emenda 198 — e a redução da participação popular atentam contra esses princípios de transparência e controle social exigidos pela UNCAC.
De igual maneira, a Convenção Interamericana contra a Corrupção (OEA, 1996), nos artigos III e V, obriga os países a estabelecer mecanismos que permitam a participação da sociedade civil e o acesso à informação sobre a administração pública, especialmente em decisões com potencial impacto social e ambiental. Ao reduzir as exigências de consulta pública e permitir o sigilo de informações sobre empreendimentos estratégicos, o Brasil pode descumprir tais compromissos de garantir controle público e accountability.
A Convenção da OCDE sobre o Combate à Corrupção de Agentes Públicos Estrangeiros, ainda que voltada a práticas de suborno internacional, exige dos signatários — como o Brasil — estruturas transparentes e sistemas regulatórios anticorrupção robustos para prevenir práticas ilícitas em contratos públicos e grandes empreendimentos. A dispensa do licenciamento ambiental e a criação de exceções legais arbitrárias ampliam o espaço para favorecimento indevido de agentes privados, dificultando a fiscalização e facilitando práticas corruptas.
Por fim, as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais (em especial os capítulos VI e VII, referentes ao meio ambiente e ao combate à corrupção) recomendam que as empresas atuem em países com sistemas regulatórios transparentes, previsíveis e sujeitos a escrutínio público. O PL 2159/2021 coloca em risco esse ambiente regulatório, o que pode gerar atrasos e conflitos com compromissos assumidos no âmbito de acordos de cooperação econômica com países da União Europeia, inclusive no contexto do próprio Acordo Mercosul-UE.
As consequências não serão apenas para o meio ambiente e o clima. A insegurança jurídica criada pelo projeto, aliada à Emenda nº 198 que prevê sigilo para a classificação de projetos considerados estratégicos, abre espaço para práticas de corrupção e tráfico de influência, além de afastar investimentos sustentáveis, especialmente os que seguem padrões ESG.
Conclusão
Democracia e meio ambiente são indissociáveis. Como afirmou o jurista português António Manuel Hespanha: “Sem um direito enraizado em valores coletivos e sem instituições públicas confiáveis, a democracia se torna vulnerável à erosão interna e ao autoritarismo.” Quando um país viola o direito à participação pública, nega a ciência e atropela salvaguardas ambientais fundamentais, rompe também com o pacto democrático. A cooperação internacional é fundamental, para que por meio de laços comerciais e interesses comuns, se garantam os direitos humanos, especialmente as condições básicas de vida das populações indígenas e tradicionais, que neste caso terão seus territórios invadidos por empreendimentos sem qualquer consulta.
O Brasil já foi inspiração mundial na defesa do meio ambiente e da sustentabilidade ao sediar a Eco-92, a Rio+20, e se prepara agora para receber a COP30. Quando o mundo inteiro espera liderança e responsabilidade, não pode ser também o país que acionará, de forma irreversível, o primeiro grande tipping point do sistema terrestre. Tendo em vista que esse projeto de lei representa um caminho acelerado para o ecocídio e a degradação socioambiental, pedimos ao Conselho Europeu que considere essa realidade ao avaliar a ratificação do Acordo União Europeia-Mercosul, e que atue junto ao governo brasileiro para exigir o cumprimento dos compromissos multilaterais que sustentam a governança climática global.