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“Eu sou um conjunto de coisas que fogem das métricas”, a afirmação lírica de Preto Téo

A processo de auto-re-conhecimento do poeta que mostra com a sua voz o tom de seus versos

Quem encontra seus versos nos livros “Antologia Trans” (Ed. Invisíveis Produções, 2017) e EP (Ed. Padê Editorial, 2018), ou suas performances em slams e vídeos pelas redes sociais não tem a menor dúvida: Preto Téo é um poeta. Registrados sob nanquim ou nos frames do YouTube, seus textos e sua voz não podem ser negados. 

Nem sempre foi assim. Entre seus conflitos pessoais e os de um mundo que ainda não aprendeu a receber sua identidade e sua criatividade, a vida levou um tempo para oferecer-lhe um espaço de acolhida que o incentivasse a se manifestar. Quando o fez, Téo buscou-se como Téo Martins, Téo Albuquerque, mas encontrou em Preto Téo o nome que, de fato, alcança melhor quem ele é.

“Sem orquestra, fiz um plano pra ser encontrado
Quando precisarem me lembrar é
Só buscar no peito de quem foi semeado
Amigo, tá bonito? Bebe água.
Limpa a casa, ajuda muito.
Come fruta, também. Foi o que me ensinaram.”
Preto Téo

Há uma barreira pessoal que precisa ser transposta para que alguém se apresente como artista, e para Preto Téo, no seu caso ela está muito relacionada ao racismo. Filho de um repórter fotográfico que investiu boa parte de seu salário para que estudasse em uma escola particular de qualidade, Téo guarda uma série de memórias sobre esta vivência que representaram um entrave no seu caminho.

“Meu pai tinha a expectativa de que o ensino privado me ajudasse a entrar em uma boa faculdade, só que nessas escolas a maioria dos alunos é branca. Na minha, que era bem cara, em Guarulhos, deveríamos ser eu e mais uns dois ou três alunos pretos, um deles parente de uma funcionária da limpeza. Eu tenho muitas memórias de bullying nesse espaço”, recorda. 

Além de o espaço não ser receptivo para pessoas negras, Téo se recorda da defasagem do ensino que sentiu ao migrar da primeira série do ensino fundamental em uma escola pública para fazer a segunda em um colégio privado. “Teve um buracão, a galera já sabia escrever com letras cursivas e eu ainda estava aprendendo a escrever com letra bastão, eu já comecei a segunda série pegando recuperação”, lembra o poeta, que vê nessa diferença um dos elementos que na época abalavam sua autoconfiança.

“Quando eu identifico essas dores, eu consigo trabalhar para curá-las, mas ainda existe aquela síndrome do impostor, aquela sensação de que alguns espaços não são pra mim”, afirma Téo, reconhecendo que essas experiências o impediam de se sentir como alguém que constituísse aquele espaço escolar. “Hoje, inserido em espaços de militância, eu sei, racionalmente, que não tem essa de lugar pra uns ou pra outros, mas às vezes ainda sinto esse desconforto”, lamenta.

Apesar de ter interesse pelas artes desde muito novo, foi no Cursinho Popular TransFormação que Preto Téo percebeu que não precisaria encaixar-se em padrões que não atendiam sua criatividade. Com o incentivo de professores, Téo já compartilhava seus escritos entre estudantes e vencia a insegurança inicial por “estar em um ambiente de educação, numa coletividade onde havia pessoas como eu e que não iriam me invalidar, como tinha sido minha experiência escolar até aquele momento”, relata.

Tarja Preta | Monomito Filmes

O incentivo não foi o único impulso do cursinho para a carreira literária de Téo. Assinando ainda como Teodoro Albuquerque, sua estreia impressa dividiu as páginas do livro “Antologia Trans” com outres 30 poetas trans, travestis e não-bináries, como Naná DeLucca e Patrícia Borges. Lançado em 2017, o livro teve exemplares vendidos para ajudar a financiar o TransFormação e está esgotado.  

Participando do TranSarau, evento que reúne várias linguagens artísticas promovido e gerenciado por estudantes e idealizadores do TransFormação, Teo também encontrou sua forma de se manifestar, mais livre e visceral, a partir do que escrevia. Sua oposição à poesia clássica não configura uma objeção, contudo, mas como a requisição de uma outra forma de escrever. Téo valoriza a presença dos elementos tradicionais, sobretudo no RAP,  “mas não consigo criar a partir deles, porque essa rigidez tolhe muito a minha criação”.

“Eu sou um conjunto de coisas que fogem das métricas. Se a métrica é branca, eu sou preto; se a métrica é cisgênera, eu sou trans; se a métrica é cristã, eu sou macumbeiro, não faz o menor sentido encaixar a minha poesia em alguma métrica, a não ser na ruptura dela”, define-se. 

Mesmo o idioma pode representar um obstáculo quando se pretende manifestar ideias não conformantes. “O português não contempla a minha subjetividade. O Pajubá é muito importante pra mim, não como uma criptografia, mas como cultura, porque me permite fluir o que sinto”, explica.

O talento de Preto Téo com as palavras não se limita a escrevê-las, mas também a apresentá-las. Nas gravações do TranSarau ou em apresentações pessoais, Téo exibe com naturalidade as habilidades que adquiriu em oficinas livres e cursos de teatro profissionalizante: “Minha escrita tem muito do que eu vocalizo dentro do meu corpo, no meu gestual, tem muito do volume daquilo que eu tô pensando, mas a escrita não vai trazer o volume do grito que eu estou pensando. Meu forte é falar e colocar meu corpo no jogo de cena, mesmo”. 

Esse processo complexo de transcrever a sua essência para seu o texto, somada ao amadurecimento e aos aprendizados que vão se acumulando, permeiam a relação de Téo com suas produções. “Na Antologia Trans, sinto que consegui passar tudo que estava aqui, dentro de mim. Ainda hoje aqueles textos me contemplam. Mas para o EP, já o vejo com olhos de mudança muito acentuados, várias coisas ali já não me representam”.

Lançamento EP | Padê Editorial

“O EP foi um livro que produzi em um momento de muita depressão, de muita angústia. E a dor faz com que a gente acesse lugares que podem ser injustos”, avalia, sobretudo em referência a versos de um exercício de escrita em fluxo dedicados a uma aluna travesti do cursinho que havia sido transfóbica com ele, os quais já não escreveria.

Contudo, Téo não olha para essa ou outra mudança com pesar, mas como um registro importante, e até alguma satisfação. Aprendeu com sua “irmã de coração” e companheira do coletivo Slam Marginália, Abgail Campos Leal, “que Deus está na mudança”, aforismo colhido de “A Parábola do Semeador”, de Octavia Butler, autora que admiram em comum. “Quando vejo uma coisa que escrevi lá atrás e percebo o quanto eu mudei, eu sinto que isso é muito bom, sei como eu já fui e posso até contradizer isso. É importante a gente estar em transformação, gente que pára no tempo é no mínimo triste”, alerta.  

Neste mesmo exercício, Téo expôs angústias comuns aos homens trans em seu processo de construção de uma masculinidade não hegemônica que fizeram com que muitos se identificassem e entrassem em contato com ele para conversar, construindo uma relação  de afeto. “Eu acho que a raiva pode ter um lugar massa na poesia, e manifestar essa angústia me trouxe esse processo de troca tão importante”, pondera. 

“Esses contatos”, revela Téo, “são importantes para eu saber que as pessoas se identificam comigo, que estamos construindo coletivamente uma masculinidade que vai por um caminho diferente da que está posta, segundo a qual a gente não conversa, não demonstra carinho”.

várias performances | Monomito Filmes

Pensando ainda sobre a raiva na poesia, Preto Téo resgata o texto “Navalha”, em que simula o ódio velado que percebe direcionado ao seu gênero, à sua sexualidade e à sua negritude para escancarar que percebe o que essas pessoas não tem coragem de dizer. “É uma das minhas melhores performances, hehehe, eu gosto de incomodar, mas eu gosto de incomodar as pessoas certas”, aponta. Para Téo, há lugares em que se deve ser assertivo, colocar o dedo na ferida, “e lugares como o Slam, e espaços onde o público é principalmente preto e periférico, onde a ideia é fortalecer”.

Quando Preto Téo fala sobre seu trabalho, seja nas publicações, com apoio de editoras, ou nos zines em que teve que produzir muito além do texto para se autopublicar, às vezes contando com apoio de amigos, e especialmente nas performances em produções audiovisuais, fica evidente que não procura mais por seu nome, mas por dar vazão para essa criatividade que o mundo tentou, mas não foi capaz de represar. 

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