Denise Carreira – assessora da Ação Educativa e Relatora Nacional para o Direito Humano à Educação da Plataforma DhESCA Brasil
A autonomia escolar ocupa lugar de destaque no debate
das mudanças em curso nas políticas estaduais de educação.
Em declarações e artigos de representantes da Secretaria
de Estado da Educação de São Paulo (SEE),
publicados na imprensa, a autonomia ora aparece como
princípio a ser afirmado por essas mudanças, ora como
um mito a ser desconstruído, “armadilha” e até panacéia
alimentada ao longo dos anos de 1980 e 1990. Nesta última
perspectiva, as políticas comprometidas com a promoção
da autonomia escolar são acusadas de terem gerado
uma profunda fragmentação pedagógica, desorganização
nas escolas e excessiva liberdade nas redes públicas de ensino,
contribuindo para a queda da qualidade da educação.
Afinal, a autonomia escolar deve ser responsabilizada
dessa forma? De qual autonomia está se falando? Que
condições ela exige para florescer e qual a relação entre
ela e a ação das secretarias de Educação?
A autonomia escolar não pode ser entendida como algo
absoluto e que prescinda da ação organizada e coordenada
das Secretarias por meio de suas políticas; e, muito menos,
responsabilizada pelas limitações, inadequações e insuficiências
dessas mesmas políticas, ao longo das últimas
décadas, em garantir condições adequadas para que a autonomia
escolar de fato pudesse se desenvolver em todo o
seu potencial, observa Elie Ghanem.
Com base na produção de José Mario Azanha, Ghanem
retomou o conceito de autonomia como “possibilidade de
estabelecer novos paradigmas”, “capacidade de estabelecer
normas” e como “compreensão própria das metas da tarefa
educativa em uma democracia”. Em um breve giro pela
história, o pesquisador mostrou como a autonomia figurou
na legislação e nas políticas educacionais desde os anos
de 1930, em sua tensão permanente com o contexto político
do País.
Uma autonomia que desaparece em períodos ditatoriais,
que se restringe à dimensão didática em outros momentos
e que é afirmada enfaticamente e de forma ampla na abertura
democrática na década de 1980, como processo comprometido
com a partilha do poder e o estímulo a que
educadores(as) e comunidades participassem das decisões
das políticas educacionais, como preconizado pelo governo
de Franco Montoro (1983-1987), no Estado de São Paulo.
Nos anos de 1990, a autonomia começa a ser desqualificada
por alguns setores que propõem a aplicação da lógica
gerencial e de prestação de serviços na gestão educacional,
ao mesmo tempo em que é defendida por aqueles e
aquelas que a entendem como caminho para a efetivação
das políticas de descentralização e democratização das decisões
políticas. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (1996), a autonomia aparece no artigo 12, vinculada
ao desenvolvimento dos projetos político-pedagógicos
da escola.
Em meio a tantas tensões, afirmações e recuos, o debate
sobre autonomia revela o lugar de poder da escola nos
sistemas educacionais. Para Ghanem, a lógica vigente estabelece
uma forte hierarquia administrativa entre secretarias
e escolas, sendo que as últimas ocupam a base da pirâmide,
carecendo de poder. “A escola não deveria estar
acima ou abaixo, ela deve estar no centro das políticas
educacionais”, afirma o professor.
O desenvolvimento da autonomia escolar depende profundamente
da existência de um trabalho em equipe, que
gere reflexão sobre a realidade, identificação de problemas
comuns e a construção de soluções coletivas. Está também
relacionado à capacidade de a escola estabelecer e alimentar
vínculos com a comunidade e estimular a participação
cidadã. Como viabilizar o trabalho em equipe e a relação
com a comunidade em realidades escolares marcadas predominantemente
por profissionais sobrecarregados(as),
com muitos(as) alunos(as) por turma, sem tempo para formação,
reflexão coletiva e preparação do trabalho pedagógico,
atuando em várias escolas e com alta rotatividade?
Para se desenvolver plenamente, a autonomia escolar
exige um conjunto de condições que as políticas educacionais
ainda não conseguiram garantir, entre elas, a valorização
e a formação dos(as) profissionais da educação.
Além de ferir um princípio da Constituição Brasileira,
desqualificar a possibilidade da autonomia escolar e limitar os
seus sujeitos ao papel de executores significa reduzir a complexidade
na tarefa educativa e comprometer o potencial de
mudança que se pretende estrutural. “Mudanças têm mais
chance de sucesso quando são desejadas e envolvem aqueles
que têm um papel vital no processo. Como se propõe uma
mudança estrutural na política estadual desconsiderando-se
totalmente o diálogo com os profissionais de educação?
Qual a chance de sucesso?”, questiona Ghanem.
Jornal do Aluno
A professora Regina Oshiro abordou sua experiência e
a de um grupo de docentes da rede estadual com os materiais
fornecidos pela Secretaria de Estado da Educação no
início do ano letivo de 2007, para o ciclo II do ensino fundamental
da rede estadual (5ª a 8ª série). Em especial, o “Jornal do Aluno” e os vídeos distribuídos como parte do
Programa São Paulo Faz Escola.
Sintonizada com outras opiniões apresentadas ao longo
do seminário, Regina destacou que o programa foi imposto à rede estadual sem qualquer tipo de diálogo com as equipes
escolares, o que se caracterizou, para grande parte do
professorado, como profundo desrespeito à sua autonomia.
Apesar disso, Regina observou que uma parcela significativa
dos profissionais aprovou a iniciativa da Secretaria, entendendo
que o material facilitaria um cotidiano marcado
pela falta de tempo para preparação das aulas.
A professora avaliou que os materiais das várias disciplinas – que estão subordinados ao objetivo principal de desenvolvimento
da leitura e do raciocínio lógico-matemático – foram produzidos de forma aligeirada, com tratamento
superficial e equivocado de vários conteúdos. Observou
também que a implementação do Programa São Paulo Faz
Escola modificou o cotidiano escolar, as dinâmicas de avaliação
e colocou um novo papel para o(a) coordenador(a)
pedagógico. Criticou o fato de o material e de sua aplicação
serem pouco sensíveis à diversidade dos ritmos de
aprendizagem dos(as) alunos(as), ao estabelecer a exigência
de abordagem de uma grande quantidade de conteúdos
em uma aula.
Também observou que no material há passagens que
restringem o enfrentamento de problemáticas complexas –
como as dificuldades vivenciadas pelo ensino noturno – a
uma questão de capacidade do(a) gestor(a) escolar de coordenar
ações. Em outra passagem, é minimizado o impacto
das condições de trabalho no processo de aprendizagem
ao se afirmar que o grande número de alunos(as) em
uma classe não compromete a qualidade.
“Na base de tudo isso, existe um discurso que justifica
a precarização das condições de trabalho e reforça a responsabilização
dos profissionais pelos problemas da educação
pública, eximindo as secretarias da necessidade urgente
de garantir condições adequadas para o desenvolvimento
do trabalho escolar”, afirma Regina.
A opinião de estudantes foi expressa pela aluna Carolina
Roberto do Nascimento, da Escola Estadual Tide Setúbal.
Segundo ela, os(as) alunos(as) foram
surpreendidos(as) pela entrega do material no começo do
ano. “No início, muitos acharam que poderia ser algo
bom, que garantisse uma mesma qualidade de ensino para
todos. Depois, começamos a achar que os conteúdos foram
sendo “jogados” em cima da gente. Tudo muito rápido,
sem muita discussão”.
Autonomia responsável
Gustavo de Oliveira, da Revista Nova Escola, lembrou
que jornalistas têm dificuldade de acesso a informações
nas secretarias: “Há muito que avançar”. E ponderou sobre
a necessidade de uma “autonomia escolar responsável”,
submetida a uma lógica de interesse público. “Por
exemplo, não podemos deixar que uma direção mantenha
livros trancados”. O repórter defendeu a necessidade que a
autonomia seja construída por meio de um forte diálogo e
envolvimento com a comunidade. Várias falas reforçaram a
importância do controle social e da gestão democrática
como bases para a autonomia escolar e do envolvimento
das entidades sindicais nesse debate.
* Este texto reflete as exposições e debates empreendidos durante o “Seminário Mudanças na Educação Paulista: gestão, currículo e profissão docente”, na mesa “Autonomia político-pedagógica – alteração nas atribuições da escola e dos profissionais da educação”, que teve a participação de: Elie Ghanen, professor da Faculdade de Educação da USP; Regina Oshiro, professora da
rede pública estadual na capital; e Gustavo de Oliveira, repórter da revista Nova Escola.
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