Cristiano Di Giorgio - Professor da Unesp/Presidente Prudente
As mudanças na educação paulista, anunciadas pela
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEE),
não foram sistematizadas em documento oficial. Da mesma
forma, representantes da SEE não compareceram ao debate
promovido pela Ação Educativa, em abril de 2008, para
apresentá-las ou explicá-las.
Com isso, os dados, reflexões e análises do impacto das
medidas sobre o “ofício docente” foram baseados nos decretos
administrativos relativos ao tema, informações que circularam
na imprensa, material elaborado pela SEE para “orientar” o trabalho pedagógico e, sobretudo, em relatos de
profissionais da Educação.
Alterações na carreira
Ao descrever as medidas anunciadas, Aparecida Neri
de Souza enfatizou que não há nada específico a respeito
da carreira do professor ou do trabalho docente, mas que as
medidas como um todo têm impacto significativo nesta esfera.
Com base no documento “Agenda para a Educação Pública”,
organizado pela SEE em agosto de 2007, a pesquisadora
identificou dez ações ou projetos anunciados como
medidas inovadoras, com vistas a promover a qualidade do
ensino na rede estadual. Duas ações foram destacadas: o
Projeto Ler e Escrever e a política de bônus. O projeto Ler e
Escrever, em síntese, articula medidas como a presença do
professor auxiliar (bolsista), o material pedagógico do aluno
e do professor, a avaliação bimestral dos alunos, a jornada
de trabalho como carga suplementar de quatro horas semanais,
entre outras.
Já a “Gestão de resultados e políticas de incentivo”,
mais conhecida como a política do bônus, prevê a premiação
financeira para as equipes das escolas, cujos estudantes
tiverem desempenho satisfatório nos exames e os professores
atenderem a determinadas condições, como “envolvimento, compromisso e responsabilidade”, que devem
ser julgados pela supervisão e direção da escola, participação
em programas de formação continuada oferecidos
pela SEE, permanência na escola do cargo, assiduidade,
entre outros.
Aparecida avaliou que as medidas partem de uma determinada
concepção de “modernização”, que se identifica
com a eficiência, a eficácia e a produtividade. O sentido
deste projeto de modernidade está marcado sobretudo pela
idéia de competição, mas também por idéias como descentralização,
padronização e gerenciamento.
A profissionalização daí resultante é marcada pela lógica
da empresa, em que a avaliação está ligada a resultados
mensuráveis, e a organização do trabalho enfatiza as prescrições.
Neste caso, as metas (mensuráreis) cumprem o
papel de organizar e medir o trabalho. Ficam relegados a
um plano secundário, ou mesmo à total irrelevância, as
idéias da escola como lócus de produção de cultura e dos
professores como intelectuais.
Outras características deste processo de “modernização”
apontadas pela pesquisadora foram: a individualização; a
mercantilização das relações, que considera a oferta da
educação como um serviço e os estudantes e suas famílias,
clientes; e a generalização das parcerias. Para ilustrar
esta última característica, Aparecida citou a busca das escolas
privadas de língua estrangeira para assumirem a responsabilidade
pela disciplina nas escolas públicas.
Esta forma de organização resulta na diluição do projeto
pedagógico da escola em meio à multiplicidade de ações
pontuais, terceirizadas ou não. É um processo que flexibiliza
em vários aspectos, diluindo também o trabalho docente,
e, ao mesmo tempo, enfatiza a prescrição, retomando o
trabalho taylorizado, com o forte controle que se dá por
meio de avaliação, acompanhamento e monitoramento, que
procuram sempre medir objetivamente o trabalho realizado,
como preconizava Taylor.
Também se alterou o caráter da função dos coordenadores pedagógicos, que devem, a partir de agora, desempenhar
o papel de vigilantes: verificar se os docentes estão
realmente seguindo à risca o material da SEE. Para Aparecida,
o resultado deste processo será o aumento da desorientação
do docente e o efeito desta lógica é a ampliação
do seu sofrimento no exercício do trabalho, e não a melhoria
da qualidade de ensino.
Educação e política
A análise do resultado do conjunto de medidas citado
anteriormente sobre a realidade da escola ficou por conta
de José Luiz Feijó Nunes. O professor considera que a motivação
da SEE foi eminentemente política, uma vez que o
fraco desempenho educacional da rede pública estadual
está vinculado ao grupo que governa o Estado há muitos
anos. Para ele, no entanto, as ações foram baseadas em
um diagnóstico totalmente equivocado, fundamentado na
compreensão de que o baixo rendimento se deve essencialmente à forma de organização do sistema estadual de
ensino.
Nesse contexto, a autonomia das escolas foi eleita
como um dos problemas centrais. Implícita em todo o discurso
da secretária Maria Helena Guimarães Castro está a
idéia de que, com autonomia, os professores não trabalham
direito. Não é coincidência que, na gestão do governador
José Serra, já houve também tentativa de diminuir a
autonomia das universidades.
Pretende-se controlar o trabalho de professores e coordenadores
pedagógicos a tal ponto de os materiais de apoio
e formação indicarem que os encontros pedagógicos devem
começar com o coordenador desejando “Bom dia” aos
professores, por exemplo.
A intenção de padronizar o conteúdo programático em
toda a rede educacional também incidiu sobre as atividades
desenvolvidas fora do ambiente escolar. Em uma teleconferência
organizada pela SEE para explicar as mudanças aos
docentes, o grupo técnico informou que não pode em hipótese
alguma fugir do conteúdo prescrito pelo material didático
da Secretaria da Educação.
A determinação impede, por exemplo, que o ensino de
História seja baseado em pesquisas da história local – seja
de um bairro, cidade ou região –, contradizendo inclusive
as orientações do ensino da disciplina em vigor até o momento.
Também estão proibidas atividades como visitas a
teatros e museus, estudos do meio, etc., no horário de
aula. Se a escola quiser organizar atividades como estas,
só poderá fazê-lo fora do horário de aula e sem nenhuma
remuneração extra.
Dessa forma, pretende-se que as aulas sejam exatamente
iguais em todas as regiões do Estado de São Paulo,
que, como se sabe, são extremamente diferenciadas.
Ainda segundo Feijó, a mudança da grade, com perda
de aulas, por exemplo, de Sociologia, Educação Artística e
Geografia, em prol de mais aulas de Português e Matemática
e projetos nestas áreas, visam a uma tentativa de “treinar”
para os exames padronizados.
Bônus e não salário
A implantação da remuneração por bônus indica a intenção
de, no médio prazo, reduzir a importância do salário
na remuneração do professor, aumentando, em contrapartida,
o peso do bônus – mais ou menos como a
remuneração por comissão de um vendedor de sapatos.
A remuneração dos profissionais da Educação vem
ocupando grande espaço no processo de divulgação das
medidas da SEE. Uma das estratégias utilizadas, e exercida
por meio da instrumentalização da imprensa, foi a divulgação
de pesquisas que pretendem provar que os professores
não são mal remunerados.
As informações são apresentadas de forma incompleta,
sem explicitar o universo de referência analisado.
Assim, foram divulgadas pesquisas que comparam os
salários dos doutores com profissionais que não têm nível
superior. Ou então estudos que comparam os vencimentos
de profissionais cuja formação é denominada de “licenciatura”,
graduação em determinada área - na prática, todos
atuam como professores, o que, obviamente explica a equiparação
de rendimentos.
A instrumentalização da imprensa também operou para
transformar o conjunto de ações da SEE como inovações
positivas. Faltam informações objetivas sobre os princípios
que orientaram sua formulação, assim como as condições
reais de sua implantação. Também não há mecanismos
para avaliar seus resultados. Ao que tudo indica, profissionais
da educação, estudantes e pais mais uma vez são
submetidos a um conjunto de regras sobre as quais não puderam
opinar e também não terão condição de avaliar.
* Este texto reflete as exposições e debates empreendidos durante o “Seminário Mudanças na Educação Paulista: gestão, currículo e profissão docente”, na mesa “Ofício docente: o que muda”,
que teve a participação de: Aparecida Néri de Souza, professora da Faculdade de Educação da Unicamp; José Luiz Feijó, professor da rede pública estadual em Diadema; e Gustavo Oliveira,
repórter revista Nova Escola.
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